domingo, 20 de setembro de 2009

Sete Degoladores

Zésouza

Sete Degoladores

zcs@vetorial.net

capaoseco@hotmail.com

josé freitas de souza

2005

1- O acidente.

Fim do outono do ano de 1943, madrugada fria, no recinto ferroviário da cidade de Pelotas o maquinista Gaudino, um negro forte e baixo, pegou uma estopa e começou a limpar os metais da locomotiva. Ajeitando o carvão no tender carvoeiro o foguista o cuidou de cantos de olhos e sacudiu a cabeça; o maquinista, ultimamente, andava muito esquisito.

No escritório, da estação, o telegrafista Romualdo solicitou ao controle de movimento licença para o trem avançar até a estação de Teodósio, enquanto ele preenchia o formulário de licença, o chefe de trem se queixava de dor no corpo, febre e dor de cabeça. Romualdo preencheu as folhas de licença, entregou uma via ao chefe de trem dizendo:

-- Ocupa teu lugar lá na cauda que eu entrego a licença ao maquinista...O maquinista é o Gaudino.

O chefe de trem agradeceu e seguiu para a cauda do trem. Romualdo saltou da plataforma e caminhou até a terceira linha onde estava o trem, encontrou Gaudino parado ao lado da locomotiva, entregou a licença dizendo:

-- Licença até Teodósio...Boa viagem.

Gaudino pegou o papel ao tempo que perguntou:

-- Romualdo me diz uma coisa; os filhos pagam pelos pecados dos pais?

O telegrafista Romualdo olhou bem para o maquinista, estranhou a pergunta, e respondeu:

-- Bah! Gaudino eu não entendo destas coisas.

O maquinista agradeceu, despediu-se e subiu, nervoso, para a cabina da potente locomotiva, puxou com raiva, a corda do apito, segurou o braço do regulador de vapor, deu um puxão e ligeiro puxou a alavanca de abrir o reservatório de areia a qual caiu sobre os trilhos e com isto aumentando o atrito entre as rodas motrizes e trilhos. Numa zoada o trem avançou, fazendo o barulho ecoar por entre as casas beira trilhos. Avistaram o claro dos relâmpagos que anunciavam uma tempestade que vinha do lado oeste. Gaudino ficou mais irritado e nervoso. O foguista jogando carvão na fornalha olhava de cantos de olhos o gesto do maquinista, ia preocupado com aquela viagem. Doze quilômetros e estavam chegando no Teodósio, a tempestade estava bem perto, o claro de um relâmpago iluminou a cabina, Gaudino disse um palavrão. Passaram por Teodósio, Gaudino segurou a folha de licença que o agente da estação entregou com ajuda de um arco de vime. Passou os olhos no papel, gritou para o foguista jogar mais carvão na fornalha. No trecho de dois quilômetros, entre Teodósio e Capão do Leão foram alcançados pela tempestade. Trovões e relâmpagos, Gaudino, nervoso, olhava os trilhos e passava a mão na testa. Quando estavam entrando no recinto de Capão de Leão um forte relâmpago iluminou a vila. Passaram por Capão do Leão, onde o agente entregou a licença no arco, Gaudino pegou a folha de licença, não leu, guardou no bolso e com jeito de louco puxou mais o regulador dando o máximo de velocidade ao trem. Entravam no trecho de oito quilômetros entre a estação Capão do Leão e a parada Agente Gomes. A licença, que o maquinista não leu avisava que deveriam aguardar cruzamento com outro trem em Agente Gomes.

Na pequena casa de madeira, coberta de zinco, que era a parada Agente Gomes o telegrafista assustou-se com o barulho do trem que chegava. O claro do farol, o chiar forte dos cilindros e o retumbar das rodas. Passou como uma flecha aquele trem que ali deveria aguardar cruzamento. Nervoso o telegrafista correu a avisar para o controle de movimento. O encarregado de movimento imediatamente chamou a próxima estação; Passo das Pedras, que comunicou que o outro trem já tinha passado por lá. Entre a parada Agente Gomes e a estação do Passo das Pedras, dois trens corriam em sentidos opostos. O barulho de caldeiras estourando e ferros chocando-se foi ouvido num raio de dez quilômetros. Quatro mortos e quatro feridos. Ao nascer do sol as primeiras turmas de trabalhadores começavam o trabalho de remover os destroços do acidente. Um trabalhador, negro magro, alto, conhecido pelo apelido de Negro Cerrito, caminhou nervoso até onde estavam as locomotivas, olhou os mecânicos cortando os ferros para tirarem o corpo do Gaudino, passou a mão na cabeça, voltou-se para o lado nordeste, olhou, lá longe, as grandes figueiras e as paredes de uma tapera, disse:

-- Tinha que ser aqui...Gaudino já foi...Todos nós vamos pagar...

2- O encontro do padre com o telegrafista.

Dois dias depois do acidente o telegrafista Romualdo, que era um telegrafista substituto, tinha cumprido a tarefa em Pelotas e no outro dia seguiria para a estação do Nascente onde passaria os três meses de inverno. Naquela tarde foi ao centro da cidade comprar um baralho para jogar o truco com os companheiros, lá em Nascente, e dois livros: Alma Bárbara de Alcides Maya e o Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, para ler naquele inverno que passaria no Nascente, estação que quando tava de serviço à noite não dormia mesmo que o movimento de trens fosse pouco, é que no escritório da estação no inicio dos anos vinte um agente matou um comerciante, isto depois de humilhar o comerciante fazendo o carregar num carro de mão. O motivo da briga foi por falta de uma mercadoria. A mancha de sangue, do morto, ficou no assoalho do escritório.

Andava, ao entardecer, fazendo tempo, pois pretendia ir ao cinema no “Cine Capitólio” ver o filme “O Inimigo X” com Hedy Lamarr e Clark Gable, na esquina da Rua XV com Sete de Setembro encontrou o padre Zé, gordo, rosto redondo e vermelho, o sotaque de descendente de italianos, abriu os braços dizendo:

-- Satisfeito de ver meu amigo telegrafista Romualdo...Ta perdido em Pelotas...E a família?

Foram para o café tomar um cafezinho e conversaram sobre o acidente. Padre Zé perguntou:

-- Um dos maquinistas não era daquele grupo?

Romualdo tomou um gole de café, olhou para o padre, sacudiu a cabeça e disse:

–- Sim...O Gaudino.

-- O Gaudino era um dos sete.

O telegrafista botou a mão no ombro do padre e disse:

-- Sim... Fui eu que entreguei a licença pra ele sair daqui...Na hora de subir na locomotiva ele me perguntou se os filhos pagam pelos erros dos pais...

Padre Zé ficou mais vermelho, sacudiu a cabeça, mas o telegrafista insistiu:

-- E ai padre, é uma pergunta da sua área: os filhos pagam pelos pecados dos pais?

O padre não respondeu e os dois olharam para o senhor bem arrumado, roupa escura, gravata, branca, bengala, um jornal debaixo do braço, entrou no café, pediu uma caixa de charutos. Padre chegou mais perto do telegrafista e disse:

-- O chefe...Ele era o chefe dos degoladores.

-- Padre, o senhor já me disse isto uma vez... Tem certeza?

-- Tenho...Ele era o chefe das degolas.

-- Tem provas?!

O padre tomou um gole de café, engasgou e sacudiu a cabeça dizendo:

-- Segredo de confessionário...

3- O segredo da confissão.

Bonita tarde de outono do ano de 1923, numa grande casa de esquina na Rua Quinze de Novembro, o jovem Major herdeiro de grande fazenda, aliás, na divisão da tal herança brigou com os dois irmãos os quais ele conseguiu enganar, pois naquela tarde recebia a visita de importante líder de seu partido para discutirem como proceder politicamente em virtude da revolução que estava em marcha no Rio Grande do Sul. Na grande biblioteca, os dois discutiam quando a empregada, uma mulata, magra alta, muito bonita, bateu na porta, abriu, pediu licença e deixou sobre a mesa uma bonita bandeja de doces. Os dois agradeceram, ela retirou-se fechou a porta e ficou com o ouvido colado nela, escutando a conversa. Ouviu o Major dizendo: -- Eu acredito que os adversários, aqueles que já eram maragatos, até devem ser respeitados, mas os vira casacas, aqueles que até pouco tempo estavam do nosso lado e agora tão trocando de lado. Estes eu tenho uma idéia, e quero que a nossa região dê o exemplo para o resto do Rio Grande...Querem usar o lenço vermelho no pescoço, pois que usem tingidos com o próprio sangue...Degolar, estes tem que serem degolados...Eu já tenho um grupo de degoladores...

A empregada fez o sinal da cruz e afastou-se de perto da porta, quase correndo, nervosa. Passou o resto do dia preocupada e de noite pouco dormiu que escutava a o Major dizendo: - Eu já tenho um grupo de degoladores.- No outro dia, domingo, dia de folga, cedo rumou a estação para embarcar no trem “Excursão”, até Capão do Leão onde ia visitar os amigos. Desceu do trem na vila do Capão do Leão e correu para a pequena igreja de Santa Tecla a fim de botar em prática o que havia prometido durante a madrugada. Foi a missa e confessou ao padre que tinha escutado a conversa do patrão e contou dos degoladores. De dentro do confessionário, padre Zé, espiou a mulata e pensou e decidiu perguntar ao sacristão quem era o patrão dela.

4- O grupo.

Manhã fria de inverno, geada branqueando nos morros que circundam a vila de Capão do Leão, padre Zé passou a noite quase sem dormir, levantou cedo e escutou barulho de pisadas de cavalos, foi espiar; sete cavaleiros entravam na vila, iluminados pelos primeiros raios de sol. Reconheceu primeiro, um mulato alto, olhos verdes, magro, jeito atrevido; cabo Juca, gente dali do Capão do Leão e que nos poucos meses de revolução já tinha conseguido a fama de gente muito ruim, aliás, fama que chegou primeiro que ele na vila. O segundo, também era gente do Capão do Leão, um velho conhecido pelo apelido de Primo. Os outros ele não conhecia.

Os sete atravessaram a rua principal da vila, rua paralela aos trilhos, e adiante da estação entraram por um estreito caminho até o portão de uma chácara, que mostrava estar abandonada. Pertencia ao cabo Juca. No meio de umas arvores muito velhas, uma pequena casa e um galpão feitos de pedra. Pararam no portão, cabo Juca deu ordem para desmontarem e ficarem em forma, segurando as rédeas dos cavalos. Os seis ficaram em fila. Primeiro o Primo, o mais velho de todos já tinha cinqüenta anos, depois o negro, baixo e forte, que era o que menos sabia andar a cavalo, o Gaudino. Depois um negro magro alto e nervoso, Negro Cerrito. Um ruivo, cabeludo, pele branca, olhos azuis, o Punhalada. Um gordo, caprichoso, jeito de atrevido, o Zé Canguçu. O último um moreno antipático, com um cavanhaque que alias era seu apelido: Cavanhaque. Cabo Juca olhou os seis e disse:

-- Chegamos...Primo, Gaudino, Punhalada, Negro Cerrito, Zé Canguçu e Cavanhaque...Aqui eu quero ordem e disciplina...Aqui eu quero respeito...

5- A degola da família.

Fim do inverno de 1923, ano de revolução, tempo de muito medo, muito silencio. Na pequena parada Descanso entre as estações de Passo das Pedras e Capão do Leão o jovem Romualdo, terminou de escrever uma carta para a noiva. Escutou um trovão ao longe, onze horas da noite, espiou por uma fresta da janela os relâmpagos a oeste. O vento, redemoinhando, assobiava nas quinas do pequeno prédio. Viu vultos sobre os trilhos; um grupo a cavalo. Tremeu, apagou o lampião, voltou a espiar, ficou quieto, olhou bem e reconheceu um deles, era um seu conterrâneo, tinham se criado juntos: Negro Cerrito. Pararam os cavalos atrás da parada. Romualdo, muito assustado, ficou parado perto da porta, ouvindo o matraquear do aparelho de telegrafo, o tique taque do relógio e o bater do próprio coração. Teve a impressão de escutar passos na pequena plataforma. O tempo não passava, ao longe o estouro dos trovões. Escutou o grupo se afastar, continuou no escuro, sentou e dormiu debruçado na mesa. Acordou ainda estava escuro o telegrafo chamando; era a estação de Passo das Pedras pedindo licença para o trem de passageiros, concedeu a licença e abriu a porta do escritório, vinte para as sete da manhã, assustou-se ao ver o vulto que estava recostado na parede; uma mulher, negra, toda desalinhada mostrando que tinha enfrentado a tempestade, junto dela, sentado no chão e enrolado num lençol um menino, a mulher com os olhos vermelhos, pediu uma passagem para a cidade do Rio Grande. O telegrafista Romualdo voltou para dentro do escritório, abriu a gaveta de onde tirou o talão de passagens, pensou, olhou a mulher que estava parada na porta, olhou a tabela de preços, disse o valor da passagem. A mulher fungou, e quase chorando pediu:

-- Vizinho eu não tenho dinheiro...Me dê esta passagem...Pelo amor de Deus.

Romualdo desconfiou, ficou pensando, olhou bem a mulher e perguntou:

-- Quem é aquele guri?

Ela sacudiu os braços, nervosa respondeu:

-- Não pergunte moço...Tenha dó da gente, que a gente ta sofrendo muito.

O bater do relógio, os minutos passavam ligeiro, Romualdo foi até o telegrafo providenciar licença para o trem de passageiros avançar até Capão do Leão. Preencheu o formulário de licença e foi pegar o talão de passagens. Estava desconfiado daquela mulher com aquela criança, vontade de avisar a policia do Capão do Leão, mulher com olhos de bandido. Ali tinha um mistério. Ela insistiu:

-- Moço me ajude pelo bem daquela criança.

-- Senhora as passagens não são minhas, são da Viação Férrea, eu não posso dar...

Com firmeza ela interrompeu:

-- O senhor me dá o dinheiro pra eu comprar a passagem.

O apito do trem, desconfiado, ele pegou o talão de passagens, preencheu, destacou e entregou a mulher que chorou dizendo:

-- Obrigado, que Jesus o ampare para sempre.

O trem passou o telegrafista foi aquecer água para tomar um chimarrão. Continuava preocupado com aquela criança.

Perto do meio-dia, estava preparando o almoço quando seus ouvidos, atentos, de telegrafista captaram a mensagem; a estação de Passo das Pedras comunicava a policia em Capão do Leão que sete membros de uma família tinham sido barbaramente degolados e que a empregada e um dos filhos menores da dita família tinha sumido. Parou de fazer o almoço. Perdeu a fome. Bem que desconfiara daquela mulher, ficou perto do telegrafo que novas mensagens a todo o momento eram transmitidas sobre a estúpida degola. Quase três horas da tarde quando avistou um trólei vindo do lado do Capão do Leão, dois trabalhadores empurrando o trólei no qual viajava sentado, balançando as pernas o padre Zé. Naquela tarde fria, de inverno, de 1923 em que a pequena parada ainda se chamava Descanso foi que os dois se encontraram pela primeira vez. O padre sorriu, estendeu a mão dizendo:

-- Boa tarde, eu sou o padre José, mas todos me chamam de padre Zé...Prazer.

-- Prazer senhor padre...Meu nome é Romualdo...Estou aqui substituindo o encarregado da parada que esta em férias...O senhor queria alguma coisa?

Padre Zé olhou para os lados, botou a mão no ombro de Romualdo e disse:

-- Meu amigo confie em mim...Teve um crime aqui perto...Os tempos são difíceis...Tu viste alguma coisa diferente por aqui?

Romualdo ficou nervoso, vermelho, respirou, pensou e respondeu:

-- Hoje de manhã uma mulher, com um guri, embarcou para Rio Grande...

-- E de noite o telegrafista não viu nada.

-- É...De noite?...Vi...Passou um grupo a cavalo...

Padre olhou bem nos olhos do telegrafista e avisou:

-- Meu amigo Romualdo fique calado, não diga nada para ninguém, não diga que viu a mulher... Não diga que viu o grupo a cavalo...Tempos de revolução...Nós vamos ser amigos...Daqui a algum tempo, depois que isto acalmar a gente vai conversar sobre isto... Tou substituindo o padre do Capão do Leão...

O telegrafista sorriu e comentou:

-- O senhor também é substituto.

-- É verdade e por isto tenho certeza que vamos nos encontrar muitas vezes, por estas beiras de trilhos...Não esqueça, fique em silencio, todo cuidado é pouco.

Romualdo passou a mão na cabeça.

-- Mas tão dizendo que a empregada roubou o guri...

Padre Zé sacudiu a mão irritado:

-- Ora estão dizendo...Ninguém ainda sabe o que aconteceu...Fique calmo e em silencio...Eu vou seguir, antes que anoiteça, quero chegar no Passo das Pedras para rezar no velório de sete degolados.

6- Romualdo procurou o padre Zé.

Padre Zé estava sentado, sozinho, dentro da pequena igreja de Santa Tecla na vila do Capão do Leão quando com alegria viu chegar o telegrafista o qual por sua vez não estava alegre e sim preocupado:

–- Boa tarde padre...Com licença.

-- Boa tarde, que alegria ver o amigo...Anda bem de saúde?

-- De saúde eu vou bem...Padre eu estou preocupado com aquela mulher e aquele guri que embarcaram no trem, naquela manhã da degola...

-- O que preocupa o amigo?

-- É que uma mulher lá do Passo das Pedras disse para a policia que a tal empregada já tinha dito que não gostava dos patrões e que ia matar toda a família...

Padre Zé botou a mão no ombro do telegrafista dizendo:

-- Tem fé em Deus...Um dia tudo vai ser esclarecido...

Romualdo olhou bem nos olhos do padre e disse:

-- Ontem a policia teve lá no Descanso...

-- O delegado aqui do Capão do Leão? Que é o delegado do distrito.

-- Não...Policia de Pelotas...Perguntaram se eu sabia alguma coisa...Eu disse que não sabia de nada...Eu menti...

-- Não faz mal, fez muito bem.

-- Padre, qualquer coisa que o senhor souber, o senhor me avise...Eu sou novo, faz poucos meses que estou trabalhando na Viação Férrea...To querendo casar...

–- Fica tranqüilo, eu aviso.

-- Amanhã vou embora do Descanso, vou pra outra estação, vou passar três meses em Nascente.

7- Nascente, inverno, de 1943.

Noite muito fria e que iniciou com muito movimento, de trens, na estação do Nascente, uma estação encravada na Serra das Asperezas a 120 Km de Pelotas. Depois da meia noite, quando o movimento diminuiu, o telegrafista Romualdo e os três companheiros de serviço; o guarda-chaves e mais o bombeiro, encarregado de abastecer as locomotivas com água, e o carvoeiro, encarregado do abastecimento de lenha e carvão, que Nascente era estação de abastecimento de locomotivas, resolveram fazer uma janta. O guarda-chaves fez um “quebra-bico”, comida feita com lingüiça, ovos e farinha de mandioca. Depois da janta, enquanto esperavam o próximo trem, que estava previsto chegar às três da madrugada, amontoaram os pratos sujos e a panela num canto da mesa e foram jogar o truco, enquanto jogavam o carvoeiro, que era natural de Cerrito, contou que tinha passado o fim de semana no Cerrito e relatou os acontecimentos do jogo de futebol entre o “Concórdia” de Cerrito contra o “Piratini” do outro lado. O pessoal de Cerrito costumava chamar de outro lado, a vila vizinha (na outra margem do rio Piratini), primeiro porque a dita vila vivia trocando de nome, foi Passo de Maria Gomes, depois Estação Piratiny, depois Olimpo, depois Engenheiro Ivo Ribeiro e em segundo pela rixa entre os dois lugares e assim “o outro lado” era mais em tom de deboche. Mas naquela noite na estação do Nascente o carvoeiro contou as confusões e jogadas do clássico de futebol entre as duas vilas e perguntou para o telegrafista:

-- Conhece o Negro Cerrito?

-- Aquele que é tuco?...Conheço sim

-- Pois o Negro Cerrito, no dia do jogo, se embebedou e eu que fui levar ele pra casa...Mas ele disse tanta bobagem, contou que era degolador, que era do grupo de um tal cabo Juca, contou que na revolta de 23 eles mataram muita gente.

Olhando as cartas Romualdo perguntou:

-- Por que ele falou estas coisas?

O carvoeiro sacudiu os ombros e respondeu:

-- Dizem que depois daquela pechada de trens, aquele acidente que teve lá no Passo das Pedras, que morreu o finado Gaudino, que Deus o tenha, foi desde aí que o Negro Cerrito começou a se embebedar e contar coisas de degolas. Uma coisa que ele repete é que não tava na degola da família. E eu perguntei o que foi a degola da família, mas ele não disse.

Romualdo jogou a carta e respondeu:

-- Foi uma família que degolaram no Passo das Pedras, isto faz vinte anos, aquilo foi em 1923...Degolaram até uma criança de berço...

O guarda- chaves interrompeu contando:

-- Naquele tempo eu tava de guarda-chaves do Passo das Pedras, foi uma coisa muito triste...A criança degolada era uma menina que tinha sete meses de vida...Quem fez aquele crime foi uma negra que era a empregada da família e até roubou um guri, filho da família, que tinha sete anos...Esta negra e o guri nunca mais acharam...

Romualdo interrompeu:

-- Mas dizem que quem degolou foi o cabo Juca e sua turma...

O guarda chaves interrompeu afirmando:

-- O cabo Juca e a turma dele, com ele eram sete: Negro Cerrito, Cavanhaque, Gaudino, Zé Canguçu, Punhalada e Primo...Eu conheci eles todos, eles só degolavam bandidos... Bandido é pra degolar mesmo.

O carvoeiro perguntou:

-- Este dito cujo Cavanhaque, que o senhor falou, é aquele que é guarda chaves?

Romualdo respondeu:

-- Ele mesmo...Ele é guarda-chaves substituto.

Enquanto jogavam, o telegrafista, pensava nas palavras do guarda chaves e preocupado lembrava daquela triste manhã na parada Descanso que deu a passagem para a mulher.

8- Almoço com o padre Zé.

Inicio da primavera do ano de 1943, o telegrafista Romualdo naquela sua vida de substituto, sempre andando de estação em estação. A mudança, uma cama de lona daquelas de abrir e fechar, ou seja, sanfonada, uma trouxa de cobertas, uma mala com as roupas e uma caixa com o material de cozinha; fogareiro, panela, prato, talheres, chaleira, cuia e bomba, seguia de Nascente para a parada Agente Gomes, antiga parada Descanso, entre as estações de Passo das Pedras e Capão do Leão no trecho Engenheiro Ivo Ribeiro a Pelotas da linha de Bagé a Rio Grande. Às doze horas o trem de passageiros “P41" o principal da linha, chegou à estação de Cerro Chato, ponto de almoço, passageiros correram para o restaurante, vendedores, com os tabuleiros na cabeça, cercaram o trem vendendo pastéis e arroz com leite. Calmo Romualdo seguiu para o restaurante onde com alegria encontrou o padre Zé que ao apertar sua mão disse:

-- Sei que o amigo telegrafista gosta das sopas do Cerro Chato.

Romualdo ficou vermelho, sorriu e procurou trocar de conversa, que a tal estória dele gostar das sopas de Cerro Chato, era uma brincadeira que alguns colegas de serviço faziam com ele, pois que diziam que às vezes em que ele tirava serviço no Cerro Chato, costumava fazer as refeições na casa de uma viúva, que fornecia refeições, e esta dita viúva fazia muito uma sopa com carne de ovelha, arroz e couve e que os ferroviários chamavam a “sopa do Cerro Chato”, mas diziam que Romualdo e a viúva tinham um caso de amor. O Padre o convidou a sentar e perguntou:

-- Vai pra onde?

-- Vou pro Agente Gomes...Por falar em Agente Gomes eu me lembrei daquele caso, a degola da família, lembra?

-- Claro que lembro...Toda vez que a gente se encontra a gente fala nele.

-- Pois me contaram que o Negro Cerrito anda bebendo e contando nos bares do Cerrito que era degolador.

Vermelho o padre sacudiu a mão:

-- Ficou impressionado com a morte do Gaudino...

-- Isto mesmo...Ele diz que ele não tava na degola da família...

-- Ele diz?

-- Sim padre...E o guarda-chaves, que ta lá no Nascente, que naquela época tava no Passo das Pedras, disse que quem degolou a família foi aquela negra que roubou o guri...

-- Ora disse!...Disse mas não tem provas...

-- Mas os jornais da época...

-- Ora os jornais da época! Os jornais de Pelotas, o dum lado da rua era maragato, o do outro lado da rua era chimango...

-- E quem matou a família?

Padre Zé sacudiu os braços, chamou o garçom, pediu dois pires com arroz com leite; era famoso o arroz com leite de Cerro Chato feito com gemada e merengue, olhou bem para Romualdo e respondeu:

-- Provas eu não tenho mas tudo indica que foi o cabo Juca e a turma dele...

-- Mas padre aquela família nem era metida na política...

-- Eu sei...Eu estudei o caso. Aquela família veio lá do norte do Rio Grande do Sul o casal eram primos que tiveram os parentes degolados na revolução de 1893, e então eles fugiram e vieram pro Passo das Pedras e compraram aquele pedaço de campo com 130 hectares...Meu amigo, telegrafista, aquele pedaço de campo ficava no meio dos campos do Major, só tinha um canto onde saia para a estrada...O Major já tinha passado os irmãos pra trás na herança, que isto não é segredo que nos cafés de Pelotas todos sabem...E o Major andou propondo ao chefe daquela infeliz família comprar o campo e o finado não quis vender...Era sonho do Major ficar com aquele campo e ficou, porque não apareceu nenhum herdeiro, as cercas caíram e agora o Major bota o gado dele ali e fechou o campo junto com o dele...

Romualdo pediu mais dois pires de arroz com leite e perguntou ao padre:

-- O padre acredita que alguém ia mandar degolar, até uma criança de berço, por causa de uma merda de 130 hectares de campos?

-- Acredito...Com o tempo nós ainda vamos descobrir muita coisa...

-- Tomara Deus...O que eu mais quero saber é noticias daquele guri que a empregada levou.

9- Roda de mate doce.

A parada Agente Gomes era um povoado basicamente de ferroviários, casas de madeira, a pequena estação, casa do guarda-chaves e dez casas para os trabalhadores da conservação da via permanente, no Rio Grande do Sul estes trabalhadores eram chamados, popularmente, de tucos.

Naquela primavera de 1943 o telegrafista Romualdo ficou encarregado dos serviços noturnos, por isto num domingo de muito vento frio e muitas garoas, passou a tarde numa das casas dos tucos jogando víspora e tomando café com bolo frito. Mesa grande cheia de gente na volta, inclusive bastantes moças bonitas, marcando as cartelas com grãos de feijão e dando risadas. Perto do fogão à lenha, que esquentava a peça, um grupo de velhas tomava mate doce e uma Negra gorda comentou:

-- Morreu o coitado do finado Gaudino, isto cá prum bem de conversa, até diziam que ele era dos que degolaram aquela família aí no Passo das Pedras...

Uma velha, muito enrugada, despejou a colher de açúcar na cuia e interrompeu:

-- Comadre, aquele crime quem fez foi àquela safada daquela negra, que era a empregada daquela gente, coitados que Deus os tenha...Que quando se deu aquele crime a gente tava morando lá no Cerro Chato, daí que lá pro Cerro Chato foi um tuco que era papareia de Rio Grande, a mulher deste tuco conhecia a tal empregada e a tal da mulher contou, lá no Cerro Chato, que a empregada matou sete pessoas da casa, matou uma criança de sete meses e levou o guri de sete anos pra fazer mandingas...Que esta gente papareia tem muita gente destas tais de “macumbas” e “batuques”, esta que foi lá pro Cerro Chato era macumbeira de fazer feitiços, a gente tinha medo dela...Pois esta que foi lá pro Cerro Chato, contou que a empregada levou o guri com sete anos pra fazer uma mandinga braba de sacrificar a criança...Acredita? Um tal de ritual de matar um inocente...Até disse que ela tava amigada com um nortista...

Romualdo jogando, víspora, mas prestando a atenção na conversa, ficou preocupado. Aquela foi uma noite de pouco movimento de trens mas ele passou acordado pensando na conversa das comadres. Lembrou daquele menino, naquela manhã de 1923, olhos de medo e suplica. Se tivesse avisado a policia do Capão do Leão ou se três dias depois, quando um policial de Pelotas fez perguntas e ele mentiu, tivesse dito a verdade talvez a policia tivesse ido atrás da empregada em Rio Grande.

10- Cavanhaque.

Naquele ano de 1943 o mundo sofria com a grande guerra, o hemisfério Norte tinha fome e frio, o Rio Grande do Sul, celeiro do Brasil, produzia e noite e dia os trens corriam para o porto do Rio Grande. Nervosismo, linhas entupidas, homens cansados. O guarda-chaves que acompanhava Romualdo no turno noturno em parada Agente Gomes precisou ir ao dentista e por tal tirou um dia e uma noite de atestado, para o substituir, naquela única noite, chegou o Cavanhaque. Praticamente Romualdo e Cavanhaque trabalhavam, como substitutos a vinte anos e neste tempo por varias vezes tinham trabalhado juntos. Romualdo conhecia bem as manias de Cavanhaque; cumpridor do dever, sempre disposto e alerta mas pouco simpático, calado e um olhar de meter medo. Pois naquela noite, às 20 horas passou o último trem de passageiros; P44 que ligava Rio Grande a Ivo Ribeiro, Cavanhaque deixou o lampião sinaleiro na plataforma da pequena estação e entrou no escritório perguntando:

-- Tem algum trem perto?

Romualdo olhou o relógio na parede e respondeu:

-- Daqui à uma hora vem um do lado do Passo das Pedras.

Cavanhaque olhou bem para o telegrafista e disse:

-- Vai fazer quatro meses que o finado Gaudino morreu.

Romualdo estranhou o guarda-chaves puxar conversa mas respondeu:

-- Verdade, quatro meses...Eu entreguei a licença, lá em Pelotas, pra ele iniciar a viagem.

Cavanhaque passou a mão na barba:

-- E aqui no “Gomes” eles cruzaram a toda...Nem o chefe de trem puxou o freio de emergência...

-- O chefe de trem ia com muita febre e dormiu na posição.

Cavanhaque ficou passando a mão na barba e Romualdo com vontade de continuar a conversa que talvez soubesse mais algumas coisas daqueles tempos de degolas, pensou e disse:

-- Depois que o Gaudino morreu o Negro Cerrito anda com muito medo.

Cavanhaque sacudiu a cabeça, olhou para Romualdo e disse:

-- O Cerrito sempre foi cagão...Eu falei com ele, outro dia, lá em Ivo Ribeiro e ele acha que agente vai morrer que nem os outros.

Romualdo procurou a pergunta e fez:

-- Quantos já morreram?

Cavanhaque olhou para cima e para baixo, coçou a barba e respondeu com seu jeito calmo de falar:

-- Ué! Dos sete, que eu sei, já foi três...Primo, Zé Canguçu e Galdino...O Punhalada agente nunca teve mais noticias.

Romualdo tava gostando da conversa e perguntou:

-- Os outros dois, Primo e Zé Canguçu, tiveram morte sofrida?

Passou a mão na barba, sacudiu a cabeça e respondeu com muita calma:

-- O Primo quem matou foi uma empregada duma fazenda, lá perto do rio de São Gonçalo, numa noite que a gente tava lá pra matar o velho dono da tal fazenda...Naquele tempo tinha um jornal de Pelotas que escrevia muita mentira contra o governo legal...Na tal fazenda tinha um velho que tinha o costume de passar a noite escrevendo mentiras pra mandar pro tal jornal...O cabo Juca recebeu ordem de ir degolar o tal velho...E a gente foi, e a gente chegou, e a gente pediu poso, e a gente mentiu que era tropeiro que iam lá pros lados da Lagoa Mirim...A gente chegou de tarde, uma tarde bonita...Debaixo de uma ramada tava o velho, três mulheres e a tal mulata, e as mulheres descascando pêssegos e a mulata mexendo um tacho pra fazerem pessegada...Tinha umas crianças e um negro de seus vinte anos, que era o peão caseiro...E tempo de revolução, e os filhos, e o genro andavam na luta, e a fazenda só com mulheres...Tarde de sol a casa toda aberta e cabo Juca já pensou na idéia de fazer o serviço...Mandou o Primo pular a janela e se esconder dentro da casa...Primo se escondeu dentro de um guarda-roupas...Na hora da Ave Maria a mulata, muito bonita, de seios grandes, acendeu uma vela e foi revisar a casa, e olhando debaixo de camas, atrás de portas, dentro dos armários, abriu o guarda-roupas viu o bico da bota do Primo, que ele tava bem escondido no meio das roupas...Eu to contando isto porque a tal mulata, depois, contou lá no Capão do Leão...Ela viu a bota do primo, soprou a vela, resmungou que a vela tinha se apagado e foi na cozinha acender, voltou com a vela acesa e uma faca...A gente tava no galpão, na beira do fogo, tomando chimarrão e latiram os cachorros, e gritaram lá dentro da casa, e deram uns tiros pros lados do galpão e o Primo entrou pingando sangue...Tava todo cortado no meio das pernas, tava até meio capado, com um ovo pendurado...Gemia de dor e pingava sangue e a gente preparou os cavalos pra fugir...Daquele jeito o Primo não montava, cabo Juca mandou o Punhalada degolar...Degolado botamos ele em riba do cavalo, de bruços na sela e amarramos. Passamos a noite escondidos num capão e de manhã jogamos o Primo dentro dum banhado pros jundias comer.

Romualdo olhou as horas e perguntou:

-- E o outro?

-- O Zé Canguçu...De nós sete o Canguçu era o mais guapo...Punhalada também era guapo...Cabo Juca desconfiou que o Zé andava carregando cachaça na guampa de carregar água, cheirou a dita guampa, Zé não gostou e as coisas entre os dois ficaram ruins. Num domingo o Zé fugiu e foi pra vila, e lá se embebedou, e lá andou dizendo besteiras e a policia trouxe ele e entregou pro cabo Juca...A gente tava todos no galpão o Zé caindo de bêbado e o cabo disse: filha da puta. O Zé olhou, atrevido pra ele e respondeu: rapadura, tua mãe de perna aberta meu pai de pica dura...Cabo Juca, ligeiro, puxou a faca e atirou, ele atirava faca muito bem, todas as manhãs ele treinava...A gente tudo vendo, a faca cravou no pescoço do Zé que vidrou os olhos ficou sacudindo o corpo, cara torcida de dor, sempre olhando com muita raiva pro cabo, perdendo o sangue, as pernas amolecendo mas ele ficou de pé até que quando caiu tava morto.

Romualdo estava pensando o que perguntar mas naquele momento o controle de movimento solicitou a licença para um trem de cargas vindo do Passo das Pedras. Cavanhaque saiu para ir atender as chaves de entrada do recinto, ao sair disse:

-- Nunca sei noticias do Punhalada.

11- O fim do Punhalada.

1945, o mundo respirava aliviado pelo fim da guerra mas já tinha medo da bomba atômica e iniciava a guerra fria. Romualdo estava trabalhando no Passo das Pedras e recebeu a visita do padre Zé. O telegrafista muito contente porque o filho, tinha um casal, foi admitido na Viação Férrea; mais um da família que era ferroviário. O avô e o pai de Romualdo tinham sido ferroviários, aliás, o avô começou no ano da inauguração da linha Rio Grande a Bagé em 1884.

O padre andava estudando a possibilidade de construir uma capela para Santo Antônio, no Passo das Pedras.

A o meio-dia os dois se deram o luxo de irem almoçar, um farto feijão tropeiro e roupa velha de charque, no hotel, claro que acompanhado de um bom vinho. Depois do almoço os dois ficaram conversando e um viajante, que estava sentado a uma mesa de canto, levantou e foi perguntar se podia sentar com eles, concordaram, o viajante sentou e perguntou:

-- Os senhores são daqui de Passo das Pedras?

O padre Zé respondeu:

-- Somos e não somos, vivemos na beira dos trilhos, ora num lugar ora no outro.

O viajante sacudiu a cabeça e disse:

-- O senhores já ouviram falar que em 1923, aqui neste lugar, degolaram uma família?

Os dois se olharam e sacudiram a cabeça. O viajante continuou:

-- Eu conheci um dos degoladores...Lá perto do rio Jaguarão num posto avançado de uma grande fazenda...Se morava no galpão o capataz e mais dois peões e ali por perto não morava mais ninguém...Apareceu, lá, pra domar uns cavalos o Punhalada...Bom domador era muito guapo, laçava, atirava boleadeiras...Um dia as sete da manhã ele montou num potro e sumiu, achamos ele as sete da noite caído no meio de umas pedras, todo quebrado...Passou a noite no galpão gemendo de dor e pedindo que matassem ele, no outro dia é que se levou ele pra Jaguarão...Foi naquele ano que deu uma chuvarada que encheu Jaguarão, foi em 1925...Quebrou a bacia e ficou paralítico, pobre homem não podia caminhar...Não tinha parentes, que a parentada dele já andavam de muda lá pros lados de Porto Alegre...Levaram de volta lá pro posto da fazenda, ora lá só tinha três homens cheios de serviço, como iam cuidar do pobre homem?...Também ele ficou sem movimento no braço direito...Andava de arrasto, todo sujo, mijado, cagado, reclamava, gemia, reclamava...Um carreteiro, que passou lá, deu a idéia de fazer uma cadeira furada e vestir nele um saiote feito de sacos...E ali ele tava naquela cadeira cheio de moscas na volta e clamando...Eu era novo, tinha pena dele, e quando podia até ajudava ele...Ele me contou, mais de uma vez, que eles degolaram a família, o Punhalada degolou a criança...De berço, sete meses...E outros dois; Cavanhaque e Negro Cerrito deixaram uma empregada fugir levando uma criança...Punhalada sofreu sete meses...

12- No Excursão.

O “Excursão” era um trem de tabela que todos os domingos ligava Rio Grande a Ivo Ribeiro, com viagem de ida pela manhã e volta à tarde. Logo depois da inauguração da ferrovia em 1884, a companhia seguido promovia excursões até a Estação Piratiny (um dos nomes que teve o outro lado), às vezes estas excursões eram organizadas pelo restaurante de Cerro Chato o trem seguia até aquela estação e os jornais de Rio Grande e Pelotas anunciavam os banhos de arroio, churrascos debaixo de figueiras e bailes de ramadas. Depois o Excursão passou a categoria de trem de tabela e todos os domingos, por mais de 60 anos, fez a viagem.

No verão de 1950, numa tarde muito quente, o Excursão vinha muito cheio que o Esporte Clube Piratini fez um torneio de futebol em Ivo Ribeiro, viajavam os times e suas torcidas; Santa Tecla do Capão do Leão e Esperança de Povo Novo, ao passar em Passo das Pedras aumentou a lotação que ali tinha grande movimento de carreiras de cancha reta. Trem com 25 vagões e muita gente, de pé, nos corredores. Entre Passo das Pedras e a parada Agente Gomes a locomotiva quebrou enquanto providenciavam o socorro, procedente de Pelotas, padre Zé e o telegrafista Romualdo, que viajavam no trem foram para atrás do comboio, desceram e caminharam alguns metros por cima dos trilhos, pararam perto de um grande pedaço de ferro, que estava ao lado da linha, Romualdo apontou:

–- Restos do acidente do Gaudino...Já faz sete anos.

Os dois sentaram sobre o trilho e logo um mulato, magro, alto, aproximou-se reclamando do defeito do trem, falando mal da Viação Férrea e do governo, depois olhou para nordeste e apontou dizendo:

-- Lá naquelas figueiras em 1923 degolaram sete pessoas, até uma criança de sete meses...Uma empregada, e levou um guri com sete anos pra fazer mandingas de feitiços...Era uma negra, até era bem bonita, e era mandingueira...Eu conheci ela que quando o Major ficou com a herança em 1921, eu era pedreiro, ele fez uma sede nova na fazenda...Daqui não se vê com os olhos mas a sede fica uns 500 metros atrás daquelas “arves”...Eu vim trabalhar na nova sede e naquele tempo o Major trouxe esta negra, pra cozinhar pra nós, lá de Rio Grande...Esta gente papareira tem muitos feiticeiros, que no cemitério nas noites de sexta-feira é cheio de feitiços; galinha preta, cachaça, charutos, velas...E ela era mandingueira, que no quarto dela tinha umas bruxinhas, diabinhos e muitas velas de cores...Todas as sextas-feiras ela ia pro Rio Grande, pras mandingas, voltava sábado de manhã...Quando o Major vinha na fazendo os dois conversavam muito até diziam que o Major comia...E ela levou o guri...

Romualdo lembrou da historia sobre o Punhalada e interrompeu:

-- Dizem que a família foi degolada pelo grupo do cabo Juca.

O mulato passou a mão na testa e disse:

-- Nem se pode dizer com a boca, paredes tem ouvidos e mato tem olhos...Daquele tempo tem gente que ainda não morreu e ta vivo...O Major tinha ambição naquele pedaço de campo, até quis comprar, o homem não quis vender, o Major ficou brabo...Cabo Juca trabalhava pro partido do Major...A negra, numa noite escura de preta, muita tormenta, abriu a porta...

13- O inicio do grupo.

Em 1951 já estava funcionando o ramal ferroviário entre Pelotas e Canguçu. Na estação de Colônia Maciel numa bonita região do município de Pelotas se encontraram em serviço, Romualdo e Cavanhaque. Cavanhaque sempre com a barba comprida, pois tinha um defeito no queixo que o impedia de fazer a barba direito, por isto sempre usava a barba comprida e sempre o apelido.

Uma noite Romualdo estava aquecendo a janta no fogareiro, pensando e tomando o chimarrão e o Cavanhaque chegou perguntando se teriam algum trem aquela noite. Romualdo respondeu:

-- Nada...Podemos dormir toda à noite...Tche! Vamos comer um arroz com pombas...

Cavanhaque arregalou os olhos olhou firme e perguntou:

-- Arroz com pombas?!

Romualdo notou a transformação do guarda chaves mas respondeu:

-- É, uma “alemoa” dai da colônia me deu...Estes dias eu fiz um favor pra ela; mandei um bilhete, dela, pelo trem...Hoje ela me mandou uma panela de arroz com pombas e uma garrafa com “trago de maio...” Trago de maio é uma cachaça que eles preparam: enchem um garrafão de cachaça e durante o mês, cada dia, botam uma folha de chá diferente; carqueja, hortelã, guaco... Fica bom.

Cavanhaque passou a mão na barba e com calma contou:

-- Uma vez se comeu arroz com pombas aqui em Colônia Maciel...Se veio pra ver um colono que criava pombos de correio pra mandar mensagens pros bandidos dos maragatos...E se chegou e nem se encontrou o homem e se encontrou a mulher e o cabo Juca mandou a gente matar e limpar todos os pombos e mandou a mulher fazer arroz com pombos e o finado Zé Canguçu achou um garrafão com cachaça e folhas de chá e a gente bebeu o tal trago de maio...

Romualdo despejou água na cuia e perguntou:

-- Como é que o grupo, de vocês, começou?

-- Ué! Eu nasci e me criei ali no Cerro Chato e até vendia pastel nos trens e eu queria ser ferroviário e quando fiz os dezoito anos eu me escrevi como candidato a guarda-chaves...Um dia o agente de Cerro Chato me avisou e me deu a passagem e eu fui pra Pelotas...Era uma turma grande, tava o Negro Cerrito, o finado Gaudino...Um conferente pegou o nome da gente e mandou esperar...E se ficou toda a tarde ali perto da estação e quase de noite chegou um chefe político e deu ordem que a gente era “voluntário” num batalhão provisório e levaram todos lá prum acampamento perto do São Gonçalo...Eu o Gaudino, Negro Cerrito ficamos no pelotão do cabo Juca...Uma noite a gente saiu prumas escaramuças de combates, lá pra fora da cidade...Neste combate prenderam um grupo de maragatos safados e o chefe disse que inimigo bom é inimigo morto e o pelotão do cabo Juca foi escalado pra degolar...Cabo Juca disse que ordem seja curta ou comprida é pra ser cumprida...E depois a gente andou degolando uns bandidos e depois nos mandaram pro Capão do Leão...

14- Sonho da madrinha.

Tarde calma e bonita de outono de 1953, Romualdo estava trabalhando em Passo das Pedras, meia hora antes do trem de passageiros “P 41”, uma senhora magra baixa, toda vestida de preto chegou para carimbar uma passagem de volta. Nas ferrovias vendiam-se passagens de ida e volta. Romualdo carimbou a data na passagem e a mulher procurou conversa dizendo:

-- A 32 anos que eu não vinha ao Passo das Pedras...Morei aqui...Meu pai foi tuco...Nós éramos lá de perto de Cruz Alta, mas quando ficou viúvo o pai pediu pra vir pra estes lados...Aqui se encontrou um pessoal que era lá daqueles lados até muito amigos do meu pai...O senhor já ouviu falar de uma família que degolaram em 1923?...Eram eles...O casal eram primos que tiveram os pais degolados naquela revolta de 1893...Os outros irmãos foram pros sertões do Paraná e eles vieram pra cá e compraram este campinho...Coitados. Eu até sou a madrinha do guri...Do guri nunca mais se soube noticias...Eu até sonho com ele, e seguido tenho um sonho horrível; vejo ele deitado no meio de quatro velas e uma bruxa espeta uma espada no peitinho dele...

15 - Negro Cerrito.

O ano de 1956 foi um ano ótimo para a agricultura, no Rio Grande do Sul, principalmente para o trigo. Na vila do Cerrito o movimento de grandes carretas e carroças de colônia, aquelas de quatro rodas, carregando a safra para os armazéns coloniais, era intenso. Também o crescimento das cidades de Rio Grande e Pelotas consumia o tijolo, de ótima qualidade, fabricado nas olarias de Cerrito. Foi um ano de alegrias. Naquele ano o “outro lado” chamava-se Olimpo.

Noite de domingo o Concórdia tinha jogado contra o Itaitá de Passo das Pedras, o Cine Carlos Gomes apresentando o filme “O Cangaceiro” no Clube Cerritense baile com orquestra de tangos. A lua cheia clareando a vila, Romualdo estava de férias, sentado na frente de casa conversava com padre Zé que disse:

-- Agora me mudei pra Teodósio, aluguei uma chácara, vou criar galetos e coelhos...

Foram interrompidos pela chegada do Negro Cerrito, que voltava das canchas de jogo do osso nos matos da beira do rio, o bafo de cachaça e contando a briga que aconteceu durante o futebol. Sentou na calçada. Padre Zé perguntou:

-- Cerrito me conta uma coisa... É verdade que vinham presos de Rio Grande pro cabo Juca degolar, lá no Capão do Leão?

Romualdo botou as mãos na cabeça:

-- Pronto, o padre mexeu com a abelheira...

Nervoso, Negro Cerrito, sacudiu os braços e começou a responder naquela sua maneira de falar ligeiro e misturando os assuntos:

– Mas bah! Vinham presos de Rio Grande, os papareias, e vinha de Pelotas...Tudo preso bandido...Vinham no trem da noite...Era os grupos de sete oito, às vezes dez doze...Nós levava lá pro Cerro das Almas, que lá nem tinha movimento...Lá em cima do cerro, na beira da descida degolava o infeliz dava um empurrão e ele saia correndo cerro abaixo, gingando que nem galinha de pescoço torcido...Cabo Juca achou umas caixas de dinamite, lá das pedreiras...Levava os presos lá pra cima do cerro, lá em baixo tinha um açude...Amarrava a dinamite nas costas do sujeito, acendia o pavio e ele se mandava correndo, se conseguisse se jogá no açude tava solto...No meio da descida estourava a dinamite e voava pedaço de gente pra todo o canto...Nós tamos pagando...Eu já ando muito doente do pulmão, meu coração anda bem mal... O finado Gaudino morreu no meio de um monte de ferros...Uma vez se foi pra lá de Piratini, lá no tal de Passo do Graciano, pra degolar um fazendeiro viúvo que andava arrebanhando cavalos pros maragatos...Zé Canguçu conhecia os caminhos e lá ele contou que tem um fantasma de um soldado farroupilha, da tal guerra dos Farrapos, que o fantasma pula na garupa dos viajantes, que até o nome do fantasma é Garupa...Bah! O Gaudino, que era o mais maturrango dos sete, era de Pelotas, ficou com medo e por um acaso, de noite escura nós ia por uma picada e caiu um galho seco na garupa dele...Tche o homem deu um grito e quase morreu de susto...Chegamos na fazenda do tal fazendeiro, que nos recebeu muito bem...Bah! Deu lenha pra nós fazer fogo, no galpão, deu carne pro churrasco, cabo Juca mentiu que nós era tropeiro e ia buscar tropa lá por Caçapava...De noite nós tava na volta do fogo tomando chimarrão o fazendeiro veio sentou com a gente...E conversando e tal até que o cabo Juca levantou, foi pra perto do fazendeiro e disse: Viemos aqui pra lhe degolar. O fazendeiro virou a cara, olhou pro cabo e disse: Podemos negociar... O cabo sacudiu a cabeça e disse: Não. Pra mim ordens compridas ou curtas são cumpridas. O fazendeiro tirou a própria faca da cintura e entregou pro cabo dizendo, por favor, degole com a minha...Numa viajada encontramos um carreteiro que vinha fumando, Punhalada botou um cigarro na boca, parou o cavalo perto do carreteiro, pediu fogo, dobrou o corpo pra frente, o carreteiro empinou a cabeça com o cigarro na boca e até puxou a fumaça pra brasa, na ponta do cigarro, ficá mais forte. Punhalada acendeu o cigarro, olhou o pescoço do carreteiro, ligeiro puxou a faca da cintura e num upa degolou o infeliz...A gente foi na colônia de Pelotas dá um susto nuns alemãos...Seis irmãos, filhos duma viúva, que eles até tinham uma ferraria e faziam serviços pros maragatos, freios, estribos, cambonas, pontas de lanças e outras coisas, que alemão trabalha bem em metal...Era numa sexta-feira santa e a gente chegou e só tava a velha...Fez um baita café, que café de colônia é bom, o Punhalada comendo com as duas mãos...Quando os rapazes chegaram, traziam numa caixa uma cobra cascavel que era pra matar...Matar cobras na sexta- feira santa dá sorte...Cabo Juca pegou seis panelas, que tinha num paneleiro perto do fogão, mandou eu e o Primo ir lá na rua e encher as panelas de palha seca...Cabo Juca pegou a caixa com a cobra foi lá na rua e botou a cobra numa das panelas...Botamos as seis panelas em riba da mesa e o cabo mandou cada um dos alemão escolher uma panela...Enfia a mão dentro da panela...Bah! Um rapaz de cerca de vinte anos, coitado, ficou vermelho, o olho azul vidrou, tirou a mão da panela à cobra enrolada no pulso e o dente cravado num dos dedos...

16- O viajante.

Manhã bonita de outono de 1958, um bem-te-vi pousou no fio do telegrafo e cantou, Romualdo em Passo das Pedras, sentou sozinho, na plataforma da estação pensando, chateado porque no outro dia seguiria para outra estação onde passaria dois meses, na pequena estação do Capão Seco no trecho de Pelotas a Rio Grande, aliás, a primeira além de Pelotas. Não gostava daquela estação a beira da várzea do São Gonçalo, que era muito úmida e naquele trecho corria um trem para transporte de leite o chamado “S.L” ou seja, Serviço de Leite e naquela pequena estação era o maior movimento de leiteiros. O trem passava às 5 horas da madrugada e ali juntavam mais de duzentos empregados de leitarias, a maioria rapazes novos e as brincadeiras se sucediam. Uma vez amarraram um cachorro raivoso no sino da estação. Botaram uma ninhada de ratos na mala de uma senhora. Uma noite Romulado foi deitar, tinha uma cobra cruzeira, já morta, debaixo das cobertas. Além de tudo ali no Capão Seco, durante a enchente de 1941, ele passou mais de seis meses, que os trens de Rio Grande vinham até ali e dali os passageiros seguiam de lancha até Pelotas, foi neste tempo que sofreu uma paixão violenta, se apaixonou por uma moça que vendia bolos de coalhada na beira dos trens. Depois no ano que a ponte do São Gonçalo caiu, passou ali mais seis meses e de noite gostava de jogar “escova” na casa de um tuco e nessa época inventaram que ele andava de romances com a filha do tal tuco, acabou se incomodando. Não gostava do Capão Seco dos “remangados”. Estava pensando quando chegou o primeiro passageiro para o trem das dez, aliás, o trem “P42” que ligava Rio Grande a Bagé e que de retorno era o “P41" os mais importantes do trecho. Levantou, espichou os braços, suspirou e foi ao escritório atender o passageiro que queria carimbar a data de retorno em uma passagem de volta. Pegou a passagem e viu que o logotipo era da Rede de Viação do Paraná e Santa Catarina, admirou-se ao ler o nome da estação:

-- Espalha Brasas...

O viajante, simpático, sorriu e disse:

-- Espalha Brasas, fica no Paraná, passando Ponta Grossa.

Carimbou a passagem e comentou:

-- Viagem grande.

-- Sim. Hoje, terça-feira, eu chego as seis da tarde em Bagé, durmo num hotel em Bagé e amanhã de manhã embarco num trem até Santa Maria, de tardinha faço a baldeação pra o que vem de Porto Alegre pra São Paulo e sexta-feira no fim da tarde eu chego a Espalha Brasas... É depois de Castro.

O telegrafo chamou para Agente Gomes solicitar a licença do “P42", Romualdo atendeu e o viajante foi para a plataforma. Atendeu mais dois passageiros, sentiu vontade de ir conversar com o viajante mas desistiu.

Ao meio dia foi a hotel comer feijão tropeiro com roupa velha feita de charque gordo, a moça que tava atendendo começou a falar do viajante mas a cozinheira chegou contando que ele tinha ganhado a rifa do Itaitá Futebol Clube; uma cabeça de porco assada e enfeitada com rodelas de tomate. Contente pediu pra guardar a cabeça que ia comer de noite junto com os companheiros do jogo de canastra. Foi durante o jogo de canastra que um parceiro disse que, na véspera, tinham visto um sujeito estranho andando na tapera dos degolados e naquele dia o túmulo da família, degolada, estava enfeitado com flores. Romualdo coçou a cabeça, lembrou do viajante e ficou brabo, consigo, por não ter conversado mais com o tal viajante.

17- O fim do cabo Juca.

Em abril de 1959, Cerrito e Olimpo tinham se unido para formar o município de Pedro Osório, caiu na região uma chuva de meter medo. Os rios Santa Maria e Piratini transbordaram e uma avalanche varreu a cidade. A linha férrea e as linhas do telegrafo foram interrompidas em vários pontos. Romualdo estava em Cerro Chato e muito preocupado com a família no Cerrito, seguiu a pé por cima dos trilhos, de Cerro Chato a Cerrito 53 quilômetros. Passando na estação Basílio encontrou na Capela do Sagrado Coração de Jesus o padre Zé que resolveu o acompanhar. Caminhando sobre os trilhos o padre contou que fazia poucos dias que tinha chegado do Teodósio:

-- E por falar em Teodósio, sabe que o cabo Juca morreu? Morreu lá no Teodósio...Há muito tempo à mulher tinha botado guampas nele, depois ela fugiu e foi pra Pelotas...Uma filha dele, muito puta, que teve muito tempo nos cabarés da Rua Riachuelo em Rio Grande é que cuidou ele no fim...Cuidou!... Depois que a mulher foi embora e um filho dele foi preso roubando gado, ele começou a beber e jogar o osso, passava os dias jogando o osso. Aquela chácara, que era dele, vendeu e gastou o dinheiro. Arrumou um ranchinho, ali no Teodósio, depois andou bebendo, acabou ficando meio louco. Tava dentro do rancho saia pra rua gritando que vinham degolar ele, teve muito tempo assim e depois não entrava mais, sempre na volta de casa encostado na parede e com medo. Eles vêm me degolar, tava sempre dizendo. Pra comer armava umas arapucas pelos matos e às vezes comia um passarinho assado. Depois fez um bodoque e andava no Teodósio e no Capão do Leão vendo os guris jogar bolinhas de gude pra roubar as bolinhas que era para atirar no bodoque. A filha não agüentou, foi embora com um foguista e ele ficou louco na volta do rancho. Encontraram, morto, lá perto do Cerro das Almas, já meio comido pelos urubus...

18- Aposentadoria.

Primavera de 1963, depois de 40 anos vivendo de estação em estação, Romualdo, que quando casou em 1924 recebeu a proposta de ir ser efetivo numa estação na linha da serra, além de Santa Maria, não quis deixar a mãe, já viúva, sozinha em Cerrito, por isto continuou como substituto e levou a esposa e a sogra para morarem na casa da mãe dele. Costumava brincar que vivia no mundo e passeava em casa. Última noite de serviço, a Viação Férrea do Rio Grande do Sul já não existia e sim a Rede Ferroviária Federal, por um acaso em Teodósio, onde o padre Zé tinha a chácara. Naquela noite assaram um coelho e depois da janta estavam conversando quando os ouvidos, atentos, de Romualdo começaram a decifrar as batidas do telegrafo, no código Morse, arregalou os olhos. Era Passo das Pedras chamando a policia de Capão do Leão e depois avisando a Pelotas. Um acidente; um automóvel bateu na ponte do arroio Passo das Pedras e caiu matando sete pessoas, a esposa do Major, duas filhas, dois filhos e dois netos...

19- O fim do Major.

Em 1970, a Rede Ferroviária estava decadente, muitas estações fechadas, muitos ramais suprimidos. Entre Rio Grande e Santa Maria corria um trem misto. Romualdo embarcou em Cerrito acompanhado de uma neta e teve a alegria de encontrar o padre Zé, contou que ia ao casamento de um neto:

-- Mais um que é ferroviário, mora em Santa Maria, enquanto tiver trens, um da família será ferroviário...Um teimoso e burro, que ser ferroviário é não ter futuro...O governo abandonou as ferrovias...

Conversaram muito e ao meio-dia o padre, pegou um pacote e contente disse:

-- Vamos comer uma “galinha de trem”.

Comendo galinha frita enrolada na farinha de mandioca o padre contou:

-- Em seguida que deu aquele acidente com a família do Major o bispo me chamou e me entregou uma creche e deu ordem para eu lecionar latim no “Colégio Diocesano”. Entreguei a chácara e aluguei uma casa em Pelotas. Acredita? Do lado da casa do Major...Coisa triste como sofreu aquele homem, por fim eu acompanhei... Em seguida do acidente ele ficou seis meses no hospital, depois veio pra casa e os dois filhos, que sobraram, brigaram por causa da herança. Brigaram na frente do pai de se darem socos, o Major teve um derrame e voltou pro hospital. Os dois filhos gastavam horrores e em cinco anos tinham botado tudo fora e abandonaram o pai...Eu junto com uma empregada é que cuidávamos o Major...Depois ele ficou paralítico e ai sofreu muito...Nos últimos dias ele pedia pra gente enterrar ele vivo, já não dormia, nem se alimentava direito... Morreu na semana passada, depois de sofrer sete anos...

20- A verdade.

Em 1973 Romualdo encontrou, na esquina do “Café Aquário” em Pelotas, o padre Zé. A risada o longo abraço o forte aperto de mãos, o padre disse:

-- Muita alegria em ver o amigo telegrafista...Vou embora para Porto Alegre, morar com uma sobrinha...Estou com oitenta anos...

Entraram no café e sentaram a uma mesa de canto. Tomando café e lembrando os tempos dos trens; um senhor, bem velho, terno preto, bengala, anel de advogado chegou:

-- Telegrafista Romualdo e padre Zé...Não lembram de mim? Claro! Faz cinqüenta anos...Eu policia, provisório, aliás, havia bastantes, depois da degola do Passo das Pedras fui a Descanso interrogar o telegrafista Romualdo e logo voltei a Capão do Leão para vigiar o padre Zé...Nosso chefe desconfiava que vocês estavam escondendo a empregada e o menino...O chefe de trem foi quem informou que ela viajou com o menino para o Rio Grande...Mandaram-me para a “Noiva do Mar” vigiar ela e descobrir o menino...

Nervoso, Romualdo interrompeu:

-- Encontrou ele?!

-- Fiquei numa pensão perto da casa onde ela parava...Ela trabalhava numa salga de peixe...Sextas-feiras à noite ela ia ao culto de umbanda...A segui mais de quatro meses e nunca vi o menino...Uma tarde um sujeito a esperou na saída do trabalho e conversaram muito...No outro dia o tal sujeito foi a casa dela, com duas enormes malas, imaginei ser algum mascate... Ele saio tarde da noite. Terceiro dia; ela sai de casa, não foi para o trabalho, seguiu para a estação, lá encontrou o tal sujeito...Eu vigiando os dois até que do trem, o apito, ecoou pela cidade Noiva do Mar: hora da partida e neste momento um soldado do exercito chegou com o menino e ela o abraçou chorando. O trem começou a andar e os três subiram ligeiro. Incompetente, eu não embarquei...Fugiu com o menino...Se a verdade conto; sinto o frio fio da faca...Minha mãe lavadeira e domingos fazia beijus para vender, criou-me com muito trabalho não para ser degolado e meu avo, peão de fazenda, lá no Passo das Pedras, gostava de sentar perto do fogo tomando mate e cachaça com casca de bergamota, já dizia que pra salvar o pescoço se podia mentir...A dona da pensão, onde eu parava, gostava de cuidar a vida dos outros e falar da vida alheia...Contei que a tal empregada era mandingueira, fazia ritual sacrificando crianças: o resto ela inventa e o povo aumenta...No trem da uma cheguei a Pelotas e ao chefe contei que a segui numa noite muito escura, ela e um grupo de feiticeiros levaram o menino para as dunas da periferia da cidade e lá o menino sumiu...Alertei que ela era amante de um capitão do exercito...Do exercito meu chefe tinha medo...

Conversaram sobre outros assuntos e depois que o cidadão se retirou o padre segurou o braço de Romualdo:

-- Depois de cinqüenta anos já conhecemos toda a verdade.

Romualdo sacudiu os braços dizendo:

-- Até nem sei...Já escutei tantas coisas...Eu ainda quero confirmação...

21- A confirmação.

Ano 2000 Cerrito já separara de Pedro Osório, formando novo município, e o velho Romualdo repetia:

-- O homem não junta o que Deus separou.

Tinha bronca do “outro lado” desde 1920 quando andou brigando num baile.

Capão do Leão já era sede de município e a Rede Ferroviária Federal tinha terminado. Estações abandonadas, composições sucatadas, uma empresa de logística arrendou a via permanente e no Rio Grande do Sul corriam apenas composições de cargas: grãos, combustíveis e fertilizantes, unindo terminais a terminais. Pra uma composição com três locomotivas e 60 vagões bastava um único maquinista, monitorado por computador via satélite, no trecho de Santa Maria ao porto do Rio Grande.

Foi em janeiro de 2000 que o velho telegrafista Romualdo com 96 anos, mas ainda forte e lúcido recebeu, muito contente a visita do bisneto; engenheiro e empregado na nova empresa ferroviária era mais um ferroviário na família. Visita de poucos dias que precisava voltar para Curitiba onde ficava a sede da empresa. De tardinha, os dois tomando chimarrão e o bisneto perguntou:

-- Bisa o senhor lembra de um crime que teve ai no Passo das Pedras ha muitos anos?...Degolaram uma família.

O velho olhou firme para o bisneto e sacudiu a cabeça afirmativamente.

-- Pois Bisa, veja que acaso...O avô da minha noiva...Ele mora lá em Curitiba...Ele é muito meu amigo e gosta de me contar coisas antigas...Ele me contou: ele era daquela família que foi degolada...Foi de noite e na hora que a empregada escutou barulho e acendeu a vela, dois caras entraram no quarto, ele nunca esqueceu dos caras: um negrão e outro barbudo. A empregada deu um empurrão nos bandidos e pegou ele...Ele tinha sete anos...Bah! Fugiram no meio de um temporal...Depois quando ele tava grande é que a empregada contou pra ele...Ela levou ele pra o Rio Grande, lá um tipo andava vigiando ela, aí ela era de umbanda e tinha um amigo, de religião, que era capitão do exercito...O capitão foi tri-legal com eles e escondeu o guri na casa dele...Acredita? O capitão foi ao Paraná pra dar um curso de metralhadoras no quinze de cavalaria, lá em Castro. No quartel encontrou um sargento que tinha o mesmo nome do guri. Dai, os dois conversando, descobriu que o sargento era primo do guri...Que a família deste sargento já tinha saído aqui do Rio Grande do Sul fugindo de revoluções...Dai que o sargento veio à cidade do Rio Grande e levou a empregada e o guri...A empregada teve muita sorte e casou, lá em Castro, e o guri se criou sempre com ela...Este guri ficou rico, casou e é o pai do meu sogro e avô da minha noiva...

O bisneto passou a ponta do dedo no pescoço e comentou:

-- Que dor deve ser um fio de faca cortando o pescoço do cara...Degola é uma mancha triste e covarde na história do Brasil...

Romualdo disfarçou e enxugou uma lágrima. O Bisneto perguntou:

-- Que ano foi esta tal degola?

-- Foi em 1923.

O bisneto fez uma conta e comentou:

-- Faz setenta e sete anos...

FIM

josé freitas de souza

Folhetim artesanal

2005

“Qualquer semelhança é mera coincidência”

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Rincão Bravo.

Mil novecentos e quinze. A barranca, de onde se avista a grande várzea da foz do São Gonçalo com a Lagoa dos Patos. É primavera tempo de vento nordeste mas o dia esta de calmaria. Um grande bando de maçaricos, o grito de um tarã. A cobra parelheira se arrasta a beira da grande casa. A casa que esta ficando em ruínas. Quantas peças ? Muitas já estão há anos abandonadas. A grande despensa que em outros tempos guardou farturas de grãos, carnes, vinho, jurupinga, agua-pé, é um compartimento escuro cheirando a mofo, num canto um grande formigueiro. Tem janela que faz quarenta anos que ninguém abre. Desbotada, o reboco caindo, um canto rachado. Telhado com muitas goteiras. O patio que já foi jardim de encher os olhos com rosas, jasmins, madre-selvas, um grande caramanchão e a parreira de uvas; acabou a erva braba bate nas paredes. Só usam duas peças, um quarto e a cozinha. A cozinha ainda é da parte antiga, paredes feitas de torrões. A cozinha é grande, tem uma mesa enorme. Quem mandou fazer foi o “Tropeiro da Laguna”, isto entre mil setecentos e vinte a vinte e cinco. Sim tem quase duzentos anos. Nos campos do Rincão Bravo as tropas de mulas que vinham da Colônia do Sacramento e seguiam para a Província de São Paulo, as tropas pastavam e descansavam ates de atravessar a Lagoa dos Patos para o Estreito. Foi ponto de reunião de tropeiros. Ali estiveram Cristóvão Pereira, Silva Paes. Então tem história? Sim, muita: na invasão espanhola foi acampamento, tinha um mastro, tremulou a bandeira de Espanha, ali o Capitão Molina se reuniu com seus comandados. Expulsos os espanhóis e vieram os portugueses e o novo dono Capitão do Regimento de Infantaria de Santos. Casou com uma riconeira, descendente de açorianos. Ocupou cargos importante; foi Capitão de Distrito, ajudou o Comandante Boeme a organizar a divisão das terras.

O Rincão Bravo era ponto estratégico, ponto de descida para a grande várzea do São Gonçalo. A casa viu tempos dentro dos tempos, batizados, aniversários, noites de tormenta e medo, churrascos, fogueiras de São João, cantarias de ternos de santinhos, velório, jogo de cartas, reuniões politicas, casamentos. Não, casamento nenhum. Iam ser dois, a maldita guerra não deixou.

A casa é quase tapera, moram as duas, netas do Capitão de Infantaria do Regimento de Santos. Fedem principalmente a mijo, vestem trapos encardidos, são magras, uma é a Nair, a outra é A Outra. Nair tem cem anos A Outra é mais velha mas não diz a idade, aliás A Outra pouco fala. Não passam fome, não. O Mendes cria gado no campo delas, diz que paga arrendamento, não paga mas todo o mês trás mercadorias da venda . Muito? Pouco, mas é muito; Nair come pouquíssimo e A Outra come menos. Tem a chácara que é grande e produz muito, quem toma conta é o Negro, diz que paga arrendamento, não paga mas manda frutas e verduras para elas. O Negro planta muita cebola o distrito produz muita cebola.

A Outra estava de casamento marcado, o noivo era tenente e estava no Quartel da Torutama a comando do Coronel Isaías Calderon. Tombou, morto, nas vésperas do casamento durante o Combate do Passo dos Negros. Tristeza, desespero, ódio, A Outra passou mal, levaram para Pelotas. No Rincão Bravo andou um diz que diz que nada diz. Quatro anos depois; mil oitocentos e quarenta numa noite fria o noivo da Nair também morreu, defendendo São José do Norte do ataque dos bandidos.

É mil novecentos e quinze é uma tarde de setembro, a várzea rebrota, la no fim da várzea os telhados de Pelotas e mais ao fundo a Serra dos Tapes. Num ponto da várzea a fumaça; o “vapor de terra” das cinco horas. O caminho de ferro é um risco reto no meio do verde, lá a sete ou oito quilômetros o trem parece um brinquedinho. É; os da beira dos trilhos chamam o vapor de terra de trem, a mulher do Mendes diz train. O tempo passa faz quarenta anos que tem o “ Trem das Cinco” e ainda ira rodar por muitos anos . Já se pode ir até São Paulo de trem. O Mendes foi vender cebola. A venda vai se mudar para a beira dos trilhos, tudo vai lá para a beira dos trilhos, os trilhos ficam a seis quilômetros do Rincão Bravo. O Rincão vai ficar despovoado a casa vai cair.

Nair olha o trem A Outra caminha de um lado para outro. A fumaça do trem, um bando de maçaricos. Amanhã é vinte de setembro, Nair fará cem anos, não terá festa, há muitos anos não tem. Vinte de setembro é uma data triste foi neste dia que a anarquia começou.

A Outra caminha e resmunga, tem ódio, tem revolta, tem arrependimento, tem remorso. Fez o aborto . Não deixou o pai matar os dois. Foi nos primeiros dias da anarquia, o pai delas fez a emboscada para matar os dois e ela não deixou. O pessoal do Rincão tinha o sotaque carregado, herança açoriana. Resmungou em voz alta:

- Bandidos... O bandido do Antônio... O bandido do Bento.

  • FIM (Pelotas 20 de setembro de 2009)

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sábado, 19 de setembro de 2009

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Outro Planeta.

Foi em agosto de 1999, um eclipse por acontecer e alguns entendidos em pessimismo dizendo que as previsões de um tal Nostradamus diziam que era o fim do mundo. E diz que diz e mais o lero-lero junto com o blá-blá foi aumentando e era jornal, rádio, televisão, fofoqueiro, todos falando. O eclipse sera visto no hemisfério norte principalmente na Índia. E tudo um dia acaba e ta nas previsões e etc e tal e coisa e chegou a véspera.

O primeiro que chegou na venda foi o Foguinho, chegou quieto triste, olhou para o dono da venda que tava triste e quieto: - È amanhã.- Ficaram calados. Chegou o guarda da cabana. Chegou olhou a garrafa da cachaça em cima do balcão, nada disse e nada escutou. O terceiro foi o João do Mato que chegou como sempre chegou ; quieto, ia a venda pra beber e não pra conversar. Bombachas remangadas, pés descalços, bigode grande, sorrindo o Empregado do Bebeto, chegou não viu o copo em riba do balcão, olhou pros lados, nada perguntou mas o guarda da cabana respondeu: - Amanhã acaba tudo.- O dono da venda triste, a garrafa de cachaça na prateleira, o João do Mato pegou o pacote de fumo, uma folha de papel e com calma começou a enrolar um cigarro. O Empregado do Bebeto, passou a mão no bigode, louco de vontade de beber um gole, suspirou. E chegou o Zé Preto na bicicleta velha, chapéu grande, botas e esporas, atirou a bicicleta na beira da parede, entrou na venda, olhou os companheiros, desconfiado perguntou: - o que tá acontecendo? - O Foguinho olhou pro João que olhou pro Guarda, que olhou pro Foguinho. O dono da venda respondeu:- É que amanhã acaba o mundo.- Zé Preto deu uma risada estendeu os braços gesticulando: - Bá tchê! Nem parece que vocês tem televisão... O troço não é aqui... Vai ser lá na tal de Índia.- O Empregado do Bebeto pulou contente pegou o copo e disse: - Então é noutro praneta.-

FIM

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