sábado, 24 de outubro de 2009

A Última Degola

A Última Degola

Foi num baile de formatura na ‘Sociedade Amigos do Cassino’. Mara Lima dançando a valsa com seu pai e ao fazer um revoluteio iluminou os olhos azuis de Rogério. Dançaram, juntos, o resto do baile. Depois da ressaca a realidade. Mara Lima além de burrinha muito feia. No Largo da Catedral Rogério encontrou o Zé Nortense e contou:

-- Eu tenho que me livrar da Mara...É muito feia...Um terror..

. Zé Nortense bateu o pé e protestou:

-- Tu és louco tche!...Ela é filha única...Podre de rica.

-- Zé...Porra...Ela é muito feia.

-- Ora...Toda mulher, um dia, fica feia.

No dia que marcaram o casamento levaram o Rogério para apresentar ao avô de Mara. O coronel Lima cuja a idade perdeu no tempo e antigo líder ‘chimango’. Olhou bem para Rogério e conheceu aquele olhar, perguntou:

-- Qual a sua família ?

-- Sou dos Farias

-- Neto do Gaudencio Farias ?

-- Sim.

Neto de um degolador ‘maragato’. Ora a sua neta casar com o neto de um degolador. Sacudiu a cabeça e ficou calado.

Rogério casou e ganhou o cargo de diretor em uma das fabricas do sogro. Pouco serviço e bastante salário. Passados alguns meses e encontrou o Zé Nortense:

-- Zé ...Tá difícil...Mara é muito feia...É um baita bagulho.

-- Tu és louco? Tens uma fortuna...

-- Mas não tenho mais tesão...Com ela eu não sinto vontade...

-- É fácil...Compra umas revistas de mulheres peladas...Antes de deitar tu olhas as revistas...

Primeiro as revistas depois os filmes de sacanagem e depois nada mais adiantou. Foi na volta de um jantar onde estava a dita alta sociedade que Mara usou palavras da dita baixa sociedade:

-- Rogério ou tu me comes ou eu te meto o pé no rabo.

Separou, perdeu o emprego. Com umas economias começou a trazer contrabando do Paraguai. Botou banca de camelô na Praça Tamandaré. Tudo ia bem até aquela tarde que a morena de olhos verdes, cintura fina, belos seios e bonitas coxas chegou em sua banca e pediu fiado. Fiou e não desconfiou. Ela voltou várias vezes. Emoção, paixão, tesão e pôr fim a união. Lili era o nome da morena. Ele andava a toda tesão. Tomava catuaba, bebia licor de mel e comia ovos de codorna. O Zé Nortense avisou para tomar cuidado. Lili resolveu que não queria ser só de cama, sofá e motel e passou a ajudar. Ele viajava e atendia a banca e ela cuidava do serviço bancário. Até que um dia ela fez um relatório simples:

-- A lista de tuas dividas...Tuas contas nos bancos estão com saldo negativo...Tás cheio de dividas e eu vou embora.

Ela foi e ele ficou sem dinheiro. Calmo e com decisão vestiu a bombacha, calçou as botas, o chapéu de abas largas, lenço colorado no pescoço e faca na cintura. Andou pelo ‘Calçadão da Bacelar’, atravessou a ‘Praça do Mercado’e foi ao mictório. Inclinou a cabeça para a frente, abriu a braguilha , com a mão esquerda segurou a ponta do pênis e puxou para fora, reclamou:

-- Pra Mara Lima, que nos dava dinheiro, tu te encolhias. Pra safada da Lili, que nos tirava o dinheiro, tu tavas sempre duro.

Ligeiro puxou a faca e degolou o pênis.

domingo, 11 de outubro de 2009

O COMBATE DOS ENFORCADOS

Zésouza

O Combate dos Enforcados

2005

zcs@vetorial.net

capaoseco@hotmail.com

josé freitas de souza.

Escritor AMADOR

Nasceu em Rio Grande -RS (09-08-1946)

Publicou:

Um Cadaver no Último vagão do Noturno de Santa Maria ( Internete)

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Tinha que ser o Lelei!!!

Porém, todavia, contudo, entretanto iniciamos o presente trabalho com uma breve introdução onde para começo de conversa agradecemos a todos que nos ajudaram na árdua tarefa de pesquisar sobre este terrível combate que foi uma mancha na história dos campos do sul. Cidade de Pelotas, “Princesa dos Campos do Sul”, bairro Várzea, aliás: Republica Monárquica da Várzea.

Quanto à data do combate não conseguimos com exatidão, sabemos que foi no século vinte entre os anos de 1957 a 1959, isto no calendário cristão já que no calendário judaico foi mais ou menos entre os anos de 5718 a 5719, quanto ao calendário chinês andava entre o cão e o gato. Sabe-se que foi no outono depois que o rico município de Pelotas tinha feito farta colheita de batatas, de arroz e de pêssegos (grande produtor nacional). Reinava na região uma tranqüilidade e foi por isto que o padroeiro da cidade, o glorioso São Francisco de Paula abandonou a cidade.

Abandonou é um termo muito forte, na verdade afastou-se durante um fim de semana. Saindo das águas do Laranjal, na Lagoa dos Patos, Iansã veio à cidade e convidou São Francisco para atravessar o São Gonçalo e ir a Rio Grande visitar o velho São Pedro. Na viagem passaram no Capão Seco onde convidaram o São Gonçalo, que mais que ligeiro enfiou a viola no saco e seguiu junto, embora não tendo necessidade em Povo Novo fizeram uma visita a Nossa Senhora das Necessidades, que os ofereceu araçás e junto com eles seguiu. Na Quinta como cavaco também é lenha; convidaram a Nossa Senhora da Penha. Na Junção nem visitaram o São Jorge devido a que na época acontecia naquela vila uma briga entre o padre e um comerciante que era vereador, aliás, briga que trouxe muitos benefícios à vila, mas isto é historia do município “Papareia” que no presente trabalho não tem interesse. Alegria de São Pedro foi tanta que convidou os visitantes e foram ao Cassino visitar Iemanjá.

Ora estando o santo padroeiro ausente, Exu e o Demo se reuniram para tomar cachaça com pólvora e comer pimenta malagueta e nesta citada reunião planejaram armar o caos na cidade. Nada melhor que criar uma guerra tendo a R.M.V (Republica Monárquica da Várzea) envolvida no conflito.

II

Lelei venceu a timidez e tomou a iniciativa, audaz, de acompanhar a namorada ao Cine São Rafael. O Cine São Rafael, localizado no outro lado do centro da cidade, ou seja, no lado oposto ao da Várzea era o templo sagrado das tribos da Vila Canela, Vila Manduca, Lomba e Cerquinha. Domingo, 2 horas da tarde, a matinê. Barulho de guris de todas as turmas e tribos, a maioria com muitos gibis debaixo do braço que naquele tempo era costume, antes de entrar no cinema, a troca de gibis. Foi que Lelei chegou com a namorada e a prima, dela, que naquela época os namorados não podiam andar só, ou ia uma prima, ou um irmão mais moço e na mais pior das hipóteses a mãe dela. Mal chegou à frente do cinema e milhares de pares de olhos o focaram seguido da pergunta: quem é?

A namorada era da Cerquinha, até muito conhecida, pois o pai dela era importante na comunidade por ser membro da diretoria do “Bloco Carnavalesco Girafa da Cerquinha”. Três ou quatro, conheciam Lelei e sabiam ser ele da Várzea. Vários chefes de turma, ali presente, consideraram muito atrevimento um “varzeano” no São Rafael e ainda segurando a mão de uma “cerquinhana”. Um grupo formou um bolinho em volta dos namorados dizendo piadas, falando mal da Várzea. Um deu tapa na cabeça de Lelei, outro teve vontade de passar a mão na bunda: não teve coragem.

Tenso, vermelho, orelhas ardendo, segurando firme a mão da namorada, entrou no cinema. Preocupado não viu o filme direito, com a concordância da namorada saiu pouco antes do fim do filme para evitar problemas.

III

No capitulo anterior já foi dito que Lelei era da Várzea. Sim: era da Várzea, filho de uma viúva doceira. Tinha uma fabrica caseira de doces, fabricava bolo da saúde, queque, panelinha de coco, quindim, bem casado, cocada preta, doces que diariamente distribuía para vários bares da cidade. Pois Lelei era da tribo da “Pracinha do Porto” e pertencia a “Turma do Gaguinho”. Sendo que Gaguinho era, naquela época, líder da tribo. Então Lelei pertencia à turma do grande líder. Apesar de grande líder, Gaguinho era baixinho e miúdo. E olha que pra ser líder de turma o elemento tinha que ser forte e bom na porrada tanto para se impor ante os liderados como para ser respeitado pelos adversários.

Gaguinho era franzino, mas era muito inteligente e sábia manejar as palavras, tinha bastante cultura. O pai advogado e professor, a mãe professora e duas irmãs professoras, a casa tinha uma biblioteca, pois toda a família gostava de ler. Aliás, as irmãs implicavam com os gibis, os quais ele mantinha em seu esconderijo secreto. Naquele tempo todo guri tinha seu esconderijo secreto. Na turma tinha dois fortes e bons de briga, que ajudavam o líder: Lemão e Pedras Altas Um.

Lemão era da colônia, onde se criou ajudando o pai na lavoura era forte e gostava de briga. Tinha um chulé que era a bronca da turma:

- Lemão vai lavar estas patas.

Morava com a avó, estava em Pelotas para cursar o ginásio, Ia ser engenheiro agrônomo. Era o tempo do “Eu quero ser...”.

Pedras Altas Um, era desta localidade, morava em Pelotas com uma tia, estava ali também para cursar o ginásio. O pai fazendeiro em Pedras Altas. Queria ser veterinário e voltar para ajudar o pai a administrar a fazenda.

Aqui abrimos um parágrafo para explicar que Pedras Altas era uma vila à beira da linha férrea que ligava Rio Grande a Bagé, vila sede de distrito no município de Pinheiro Machado.

Aqui abrimos outro parágrafo para explicar que Pinheiro Machado antes de ter nome de gente se chamava Cacimbinhas, aliás, o primeiro nome foi Nossa Senhora da Luz das Cacimbinhas. Quando trocaram o nome à coisa fedeu, mas, contudo, todavia, porem isto não é assunto para o presente trabalho.

Encerrados os parágrafos referentes a Pedras Altas, a do Castelo, e a Cacimbinhas voltamos a falar sobre os elementos do grupo do Gaguinho:

Saci era um negro, magro, alto, bom de bola, em cima de uma bicicleta fazia o que queria, estudava de manhã e de tarde trabalhava, fazendo entregas de doces para a fabrica da mãe do Lelei. Morava num casebre na beira do Canal de São Gonçalo, só ele e o pai, um negro velho que andava sempre de pés descalços e empurrando um carrinho de mão, pois comprava e vendia osso, cacos de vidro e ferro velho.

Pedras Altas Dois, irmão do Pedras Altas Um, era quieto, calmo, e como o Gaguinho também gostava de ler porém não pedia livros emprestados e muito menos emprestava aliás tinha seus livros fechados a quatro chaves. Da turma era o que andava sempre atrasado. Queria ser advogado, viver o resto da vida na cidade e nunca mais botar os pés na fazenda a não ser a passeio.

Doquinha, era um mulato magro e pequeno, nasceu num rancho de palha na beira do São Gonçalo, lá perto de Santa Isabel, onde viveu até os sete anos. A mãe era uma ruivinha, magrinha, muito doente e que tinha um defeito numa perna: a perna era bem fininha e por isto ela tinha vergonha e não saia da volta do rancho nem para ir a Santa Isabel. Vivia ela e o pai dela da tarefa da cortar palha (em Pelotas tinha uma fabrica de colchões e sofás que usava para enchimento a palha de santa fé), cortavam junco (naquele tempo fazia se réstias de cebola usando o junco) e também caçavam o ratão do banhado (na época a caça era permitida e o couro tinha valor comercial). Vivia a ruivinha e o pai a beira do São Gonçalo quando fugindo da policia, um negro alto, forte, dentes bonitos, olhar altivo, risada alegre apareceu pedindo pouso. Este negro fugiu de Pelotas da policia porque tinha brigado a socos com um inspetor que o queria prender porque ele estava cometendo o bárbaro crime de trabalhar como recolhedor de listas de jogo de bicho nos bares da Várzea. Ficou o negro no rancho e acabou casando com a ruivinha. Foi o casal recolher uns fardos de palha e no mesmo instante os dois foram picados por cruzeiras (cobra muito venenosa e abundante na região): morreram. Com um neto de sete anos o velho foi para Pelotas e junto à “Doca” se apossou de uma faixa de terra onde fez uma casa de madeira com duas peças, numa ele morava com o neto e a outra era um boteco onde ele vendia cigarros e cachaça. A o lado da casa uma cancha de jogo de osso. Pois o Doquinha que foi estudar no colégio da Pracinha do Porto, por influencia de uma mulher que vendia balas de mel, conheceu no primeiro dia de aula o Gaguinho e o Sargento Garcia dos quais ficou amigo e os quais muito o ajudaram: davam cadernos, roupas usadas, emprestavam livros (didáticos). Da turma era o que falava pior em compensação era o rei da matemática até queria ser engenheiro.

Sargento Garcia, o pai tinha um bar, era gordo e baixo, sempre alegre. Pois o pai dele foi servir o exercito em Bagé e lá casou com a filha de um sargento e ela tinha dois irmãos sargentos. Com o avô sargento, com dois tios sargentos a vocação do guri era ser sargento. Passava as férias em Bagé de onde voltava cheio de flâmulas dos regimentos da “Rainha da Fronteira” e com muitas histórias de milicos. Na época estava com quatorze anos, cursava a segunda série do ginásio e tinha uma preocupação faltava um centímetro para atingir a altura mínima exigida para poder ingressar na escola de sargentos em “Três Corações – Minas Gerais”, aliás, por causa deste centímetro vivia de coração na mão. Por ser gordo e por querer ser sargento a turma o apelidou de Sargento Garcia, eram o mais alegre de todos e também o mais desconfiado.

Lelei era o mais trapalhão da turma. Quando iam soltar pandorgas, geralmente na primeira tentativa já enredava a pandorga nos fios. Quando estavam jogando bolinhas de gude difícil era a vez que ele não lascava pelo menos uma. Quando jogavam bola se não fazia um golo contra fazia dois pênaltis. Pedia um gibi emprestado devolvia ou com pagina rasgada ou faltando página. Quando estavam jogando botão (hoje “2005” chamam de futebol de mesa), ou sacudia a mesa tirando os times de posição ou pior virava a mesa. Queria ser médico a que o Gaguinho dizia:

-Do lado do teu consultório vou botar uma funerária

Gaguinho, o líder queria ser jornalista, vocação que ao ser revelada a família foi bem recebida, mas custou o compromisso de três vezes por semana freqüentar um curso de inglês e duas vezes na semana um curso de datilografia. Gaguinho era o mais gozador de todo o grupo, sempre tinha uma piada na ponta da língua.

Para bem esclarecer: neste capitulo fizemos uma breve informação sobre os componentes do grupo do Gaguinho, grupo este que fazia parte da turma da Pracinha do Porto, dita turma que era composta de muitos guris.

IV

Na tarde da segunda-feira após o domingo que Lelei levou a namorada ao São Rafael Gaguinho voltando do curso de inglês, encontrou sentados no chafariz da Pracinha do Porto: Lemão, Pedras Altas Um e Sargento Garcia, sentou junto.

O chafariz citado no parágrafo anterior hoje (2005) esta localizado no centro de Pelotas, no calçadão da Andrade Neves esquina Sete de Setembro. Também conhecido por chafariz das três meninas.

Algazarra de guris brincando de policia e ladrão, outro grupo jogava bolinha de gude, os quatro amigos sentados no chafariz e Saci, de bicicleta, dobrou na esquina o Gaguinho o viu, primeiro, e gritou:

- PARALISA AI!

Com o bagageiro da bicicleta carregado de caixas de doces, parou e apoiou a ponta do pé no chão. Estava se equilibrando com dificuldade, para a alegria dos outros. Que no trato de paralisa, quando se estava de bicicleta e como ninguém era equilibrista, tinha que parar apoiado apenas na ponta de um dos pés.

No parágrafo anterior tratamos de trato que neste tratamos de explicar: Resumimos dizendo que trato nada mais era do que trato. Entre a gurizada havia três tipos de tratos: chebra, revista e paralisa. Agora trataremos de explicar trato a trato.

Chebra; dois elementos tinham o trato de chebra e um deles tava comendo, podia ser um sorvete, um pedaço de pão, um queque, uma recheada, (abrimos este parêntesis para dizer que na época não usavam a palavra lanche e sim merenda, outra coisa: ainda não tinha acontecido à invasão de comidas estrambólicas chamadas de dogs, xis não sei o quê, burgs e contraburgs), (abrimos este segundo parêntesis para dizer que recheada era feita com a metade de um pão de meio quilo partido ao meio onde se passava manteiga e recheava com um pedaço de mortadela, alertamos bem para o detalhe: um pedaço, não uma fatia. O dito cujo citado pedaço era uma rodela tirada de uma tripa de mortadela com dez centímetros de diâmetro e espessura entre um centímetro e meio a três centímetros conforme a bronca do freguês. Famosas eram as recheadas do “Bar Santa Rita” na Rua Barroso esquina com Três de Maio, ponto de encontro dos alunos do Colégio Diocesano). Fechados os dois parêntesis voltamos a tratar sobre o trato de chebra. Se um estava comendo e outro gritasse chebra, o que estava comendo tinha que repartir a comida. Se o elemento que estava comendo gritasse antes: fora! Ficava livre do trato naquele momento. Se o elemento ganhasse a chebra cabia a ele a despedida que podia ser; até a gente se encontrar, ou até amanhã.

Paralisa, era simplesmente de dois elementos que tinham o trato ao se encontrarem o primeiro que ordenasse: paralisa aí! O outro tinha que ficar parado, sem mover nenhum fio de cabelo. (Não se podia ordenar paralisa se o elemento estava no meio da rua ou jogando futebol). O paralisado ficava até o outro dizer à despedida que podia ser até agente se encontrar ou até amanhã. O Gaguinho gostava de fazer os amigos pararem nos lugares mais difíceis até que a turma dele, todos: os dois Pedras Altas, Saci, Lelei, Doquinha, Sargento Garcia e Lemão, o fizeram parar no centro do portão do Porto num dia de Nossa Senhora dos Navegantes bem no momento que a procissão saia do cais. Ficou ele ali feito um dois de paus com cara de bobo atrapalhando a procissão e levando xingada das velhas.

Revista, no trato da revista o elemento que recebia a ordem de revista tinha que entregar tudo que tinha nos bolsos, só não valia dinheiro, o resto: bodoque, rolo de cordão, bola de gude, pião, apito, figurinha de colecionar, bala, canivete, cigarro, fosse o que fosse, trato é trato. Os tratos só eram feitos entre amigos, aliás, o convite para fazer um trato era uma forte declaração de amizade. O Lemão era muito habilidoso e fazia bodoque muito bem. Gaguinho se escondeu em cima dum cinamomo para dar revista no Lemão e ganhar um bodoque que era uma jóia, até este bodoque o Gaguinho pendurou no seu quarto de estudos como um troféu de difícil conquista. A titulo de curiosidade citamos que bodoque pendurado no pescoço não entrava na revista, mas era um perigo andar com bodoque pendurado, pois que se o pai, a mãe, a irmã mais velha ou a policia visse pegava e quebrava.

Explicados os tratos voltamos a Pracinha do Porto onde o Saci estava paralisado montado na bicicleta e apoiado na ponta do pé. Gaguinho deu o “até amanhã” e Saci chegou e contou, ligeiro, pois tinha que fazer a entrega. Estava voltando da vila Canela onde havia muito diz que diz, muita alegria, pois um guri da Várzea, tinha “pagado rata” na frente da namorada, na entrada da matinê do São Rafael. Deram tapa na cabeça, passaram a mão na bunda, até dizem que chamaram de filha da puta. Da Várzea mais exatamente da Pracinha do Porto. E já empurrando a bicicleta para continuar a entrega disse:

- Lelei.

Gaguinho refeito da surpresa levantou ergueu os braços e gritou:

- TINHA QUE SER O LELEI!!!

V

Toda à tarde Lelei ia esperar a namorada na hora (17h30min) da saída, “Colégio São José”. Acompanhava a namorada até a ponte da Rua Marechal Floriano, sobre o arroio Santa Bárbara, que ali era a fronteira do “Centro” com os acessos a Vila Canela, Cerquinha, Gotuso e Fragata. Seguido ele explicava a namorada:

- Não atravesso a ponte não é que eu tenho medo... Não quero que pense que estou fazendo provocação e acabem fazendo uma traição...

E ela acreditava: coisas do amor!

Ele morava na Rua Benjamim Constant duas quadras da Pracinha do Porto e para ir esperar a saída da namorada, saia de casa às 17 horas. Pois naquela tarde de segunda-feira, Gaguinho e os outros companheiros, perto de 17 horas foram a encontro de Lelei, que saiu de casa comendo um queque e Gaguinho gritou:

- Chebra

Repartiu o queque, Gaguinho comeu e :

- Até amanhã.

Antes que o Lelei perguntasse o que eles queriam, Gaguinho botou a mão no ombro dele e convocou:

- Vamos até a Pracinha... Hoje tu não vais namorar...Queremos explicações sobre o que aconteceu, ontem na frente do São Rafael.

Lelei, pediu, protestou, gesticulou, prometeu, queria primeiro ver a namorada e depois comparecia ao tribunal. Não concordaram e o obrigaram a ir para a Pracinha. Sentados no chafariz, contaram o que já sabiam.

Lelei contou a versão dele. Teve que repetir. As perguntas:

- Tu levaste tapa na cabeça?

- Não.

- Lelei, tu não mente.

- Só tocaram na minha cabeça...

- Tapa na bunda?

Nervoso, vermelho, gesticulando respondeu:

- Não! Não!

Gaguinho, levantou, andou na volta do chafariz, olhou as “três meninas”:

- Porque tu não convidaste a gente?

- Ora, eu ia namorar ia levar vocês...

- Lelei, cala a boca.

Por entrar em território inimigo sem antes comunicar a turma, por levar a namorada no São Rafael e não no Capitólio. Lelei, namorada se leva no Capitólio:

- Tava sem dinheiro, e no Capitólio tem o baleiro... E namorada quer bala...

- Lelei, calado.

Te amo e te dolato, não te levo ao Capitólio, que o Apolo é mais barato. Já que estava sem dinheiro que fosse ao “Apolo” templo sagrado da Várzea que ontem na matinê passou um desenho do Perna Longa, uma comédia com Oscarito, Grande Otelo e Dercy Gonçalves e um filme de Tarzan. Dois filmes e um desenho numa matinê! Continuando: Tendo pagado rata em território inimigo, tendo deixado ofenderem os brios e glórias da Pracinha e da Várzea, ficas condenado a conseguir doze garrafas...

- Doze?!

Por reclamar, passamos a vinte e quatro garrafas vazias, que estamos juntando garrafas para vender pro pai do Saci e comprar uma bola nova. E como segundo castigo tem duas opções para escolher:

Primeira; nós da turma faremos o possível para te pegar de surpresa e dar paralisa quando vieres namorando. Pensa que no trajeto do São José até a ponte da Floriano; Gaguinho, Pedras Altas Um Pedras Altas Dois, Doquinha, Lemão, Sargento Garcia e Saci estarão em um ponto estratégico tentando te surpreender.

Segunda: hoje, agora, terás que atravessar três vezes num corredor polonês formado por todos que estão aqui na Pracinha.

Lelei pensou, olhou para os lados, avaliou a turma; os que jogavam bola de gude, os que brincavam de policia e ladrão mais o que brincavam com carrinhos de empurrar (sendo a Várzea plana, não tinha carrinho de lomba). Contando todos dava uns quarenta guris, respondeu:

- Corredor polonês.

Gaguinho deu seu grito de chefe, reuniu a gurizada e ordenou que tirassem os blusões, fizessem nós nas mangas e formassem o corredor.

VI

Na tarde de quarta-feira a turma reuniu na casa do Gaguinho para organizar a tabela do campeonato de futebol de mesa. Estavam no quarto de estudos do Gaguinho. Sim o Gaguinho se dava ao luxo de ter um quarto de estudos, peça grande, nas paredes e penduradas no teto a coleção de flâmulas. Sim a coleção de flâmulas do Gaguinho era de dar inveja, ele tinha um tio que era radio amador e entrava em contato com radio amadores de todo o Brasil e com eles conseguia flâmulas, que era a coleção da moda; tinha uma tia que era muito trabalhadora para o progresso da “Doutrina Espírita” o que motivava ela a fazer muitas viagens para participar de congressos, simpósios ou proferir palestras, nestas viagens ela conseguia flâmulas para o sobrinho e para completar, um primo dele era oficial da marinha mercante e de porto em porto ia conseguindo flâmulas. Eram flâmulas de times de futebol, de clubes sociais, de blocos de carnaval, de colégios, até tinha uma de uma gafieira de Niterói no estado do Rio, tinha uma de um tal clube da canja. Penduradas na porta, duas flâmulas muito bonitas; uma de um centro espírita da cidade de Três Rios no estado do Rio e a outra de um rádio amador (Um papagaio pousado num cacho de bananas, falando num microfone-PY Papagaio Catarina, vila Marcilio Dias, estação ferroviária da RVPSC, município de Canoinhas-SC.). O Doquinha namorava estas duas flâmulas.

Estavam reunidos para organizar o campeonato, esperando o Saci, para sortear a tabela. Saci chegou e enquanto o Gaguinho ajeitava os papéis para o sorteio, ele foi contando que na Vila Canela o diz que diz continuava e a alegria também e completou contando que em cada esquina, que ele passava, algum gaiato gritava uma piada ou mandava um recado atrevido.

Pedras Altas Dois soltou o gibi que estava lendo e quis saber o que havia. Lemão respondeu:

- O caso do Lelei...

- Que caso?

Gaguinho botou a mão na cabeça:

- Bah! Tu ainda não sabes... Tu sempre atrasado.

Lemão deu uma risada e resumiu o caso para o Pedras Altas dois. Gaguinho esperou para depois começar a explicar as regras do campeonato. Fazia mais de quinze minutos que já estavam discutindo as regras e Pedras Altas Dois interrompeu:

- Mas isto não pode ficar assim...

- O que?

- O caso do Lelei...

- Este assunto já morreu, estamos falando do campeonato...

- Desculpa. O assunto não morreu... Eles ofenderam a Várzea...

Lemão interrompeu dizendo:

- Eu também penso assim.

E os outros concordaram o que motivou o Gaguinho a pensar rápido e mais rápido propor:

- Vamos pensar numa vingança... Amanhã, lá no chafariz, a gente discute...

- Pode ser aqui...

- Não Lelei... O mato tem olhos, as paredes têm ouvidos e as minhas irmãs escutam atrás das portas.

VII

Reunião no chafariz, todo o grupo presente, Gaguinho perguntou quem tinha uma idéia. Lelei respondeu:

- Se pega os revolveres de espoleta e...

- Lelei, cala a boca.

Abrimos um parágrafo para dizer que naquele tempo havia os revolveres de espoleta, que eram brinquedos mas cópia fiel dos revolveres de verdade, com alça de mira, cano, coronha, tambor e gatilho (engatilhava, colocava uma espoleta e puxava o gatilho para detonar), pois que, influenciados pelos gibis e filmes de mocinho (bang-bang) , a gurizada brincava muito de mocinho também dito caubói ou cambói.

Fechado o parágrafo de explicação voltamos à reunião: Pedras Altas Dois sentenciou:

- Quem no São Rafael feriu, no São Rafael será ferido!

Gaguinho solicitou menos filosofia e mais objetividade. Sargento Garcia, sacudiu os braços e revelou seu plano:

- A gente vai domingo, na hora da matinê, lá no São Rafael... A gente leva gibis, gibi velho... A gente faz que vai trocar gibis com eles...Eles se distraem e a gente pega os gibis deles e rasga...

Pedras Altas Dois levantou uma questão:

- Indo, lá, na hora da matinê a gente perde a matinê do Apolo... Domingo, no Apolo, tem os golos no jornal do “Canal Cem”, depois tem um desenho do Gato Felix, o primeiro filme é uma comédia com o Cantinflas e segundo filme, é filme de mocinho com o Zorro.

Silencio e todos olharam para o Gaguinho; o líder decide, ele falou:

- A gente vai cedo, que até é bom porque chega lá e têm poucos inimigos ainda, rasga os gibis e volta correndo para o Apolo.

Pedras Altas Dois concordou dizendo:

- Ta certo! Que sair de lá correndo a gente vai ter que sair que eles vão querer nos pegar... A gente tem a desculpa que correu pra pegar a matinê do Apolo e não correu com medo deles...

E aconteceu: saíram cede, cheios de planos e preocupados e quando se aproximaram do São Rafael, começaram as dúvidas, mas Gaguinho avisou:

- Teremos que cumprir a missão.

Na frente do São Rafael a carrocinha do pipoqueiro, que era motivo de orgulho das tribos que freqüentavam aquele “templo profano”. Todo o domingo era sorteado pelo pipoqueiro um balão de couro.

Abrimos um parágrafo para dizer que na época o balão de couro para a prática do futebol era artigo caro e difícil de conseguir. Guris jogavam com bolas de borracha, isto nos melhores casos, porque o comum era jogar com bola de meia.

Abrimos um segundo parágrafo para dizer que naquele tempo as meias masculinas eram chamadas: “carpins” . A bola de meia ou de carpim consistia em encher uma meia de retalhos, (retalhos eram abundantes, pois tinha muitas costureiras e poucas fabricas de roupas).

O pipoqueiro sorteava, o vale vinha dentro do saquinho de pipoca, um balão. Ora ser dono do balão era ser dono do time. Isto era o recalque das outras tribos que freqüentavam: Apolo, Avenida, Esmeralda e Fragata. Se bem que o Doquinha com sua mania de fazer contas, calculava: Tendo o ano 52 domingos, na frente do São Rafael são sorteados 52 balões em compensação no dia de Natal o Apolo sorteia dezenas de milhares de brindes. Documentos ultra-secretos, que compramos numa banca de camelô, revelam que sorteios de brindes, no Natal, eram feitos por todos os cinemas de bairros.

Voltamos a descrever a chegada do grupo a frente do São Rafael, onde ainda tinham poucos guris. Um guri estava sentado na calçada, comendo pipocas e ao lado uma pilha com mais de vinte gibis. Lemão agiu rápido, passou a mão na pilha de gibis e já iniciando a disparar rasgou um e abraçou os outros. No mesmo instante o Lelei tentou tirar um monte de gibis que um guri segurava debaixo do braço, rasgou um gibi, do guri, mas levou um tapa na nuca.

Dispararam, quando correndo a toda , estavam passando sobre a ponte do Arroio Santa Bárbara, no fim da Rua Marechal Floriano: o Sargento Garcia olhou para trás e viu que um grupo inimigo os perseguia vindo de bicicletas. Para despistar os perseguidores entraram na “Praça dos Enforcados” e se dispersaram. Lelei se perdeu do grupo e não foi à matinê do Apolo, aliás, quando chegou na frente do cinema já estava na hora da saída.

VIII

Passou uma semana e no domingo o Apolo apresentava os doze primeiros episódios de um seriado de “Flash Gordon” para a alegria da gurizada.

Abrimos um parágrafo para dizer que naquele tempo em que as mulheres (só) usavam o vestido ou saia com bainha no meio da canela ou abaixo, a namorada de Flash Gordon já usava o vestido deixando aparecer à metade da coxa, para a alegria dos olhos da gurizada. Só dez anos, depois, é que inventaram a mini-saia (um escândalo na época).

Abrimos outro parágrafo para dizer que na época os cinemas apresentavam os chamados seriados, ou seja; o filme dividido em vários episódios. Por exemplo, no fim de um episódio uma flecha atingia o mocinho. Ficava uma semana preocupado com a saúde e o destino do mocinho. Domingo na matinê o episódio seguinte iniciava mostrando que no ultimo instante o ágil mocinho saltava para o lado e a flecha passava. Neste mesmo parágrafo dizemos que geralmente os cinemas dividiam os seriados em dois, ou seja, um seriado de trinta episódios: mostrava quinze num domingo e no próximo domingo mostrava os outros quinze.

Naquele domingo um grupo de bárbaros apareceu na frente do Apolo. Parou, na outra calçada, recostados no muro do “Colégio São José”. Chamou a atenção que carregavam pernas de pau. Brincar de pernas de pau era coisa que se fazia no ponto de encontro da tribo e não pelas ruas da cidade. Na verdade eram tacapes disfarçados como sendo pernas de pau.

Gaguinho alertou os companheiros. Doquinha contou: vinte e três. O gerente do Apolo, que conhecia os costumes das tribos periféricas, pegou o telefone e ligou para a policia. Um jipe da briosa “Brigada Militar do Rio Grande do Sul” estacionou na frente do cinema e o grupo de bárbaros bateu em retirada.

IX

Depois do almoço o Doquinha sentou na pedra do cais da Doca. Uma brisa suave soprava de sudoeste, deixando uma sensação térmica de vinte graus centígrados, anunciando que breve chegaria o triste e frio inverno. Gostava de olhar as águas do São Gonçalo, lembrava os bons tempos que se banhava junto com o pai e a mãe naquele “rio” amigo, as pescarias com o avô, as viagens de canoa até Santa Isabel com o pai e o avô. Pelo São Gonçalo chegavam os barcos, carregando principalmente arroz, vindos de portos distantes: Santa Vitória do Palmar, Taim, Jaguarão, Curral Alto e Arroíto, estes na Lagoa Mirim ou vindo do Arambaré, São Lourenço e São José do Norte na Lagoa dos Patos. Eram os tripulantes destes os principais fregueses do boteco do avô, onde se divertiam jogando o osso. Pelo São Gonçalo, todo o dia bem cedo, vinha um leiteiro que tinha a leitaria na outra margem: um homem, alto, forte, sempre barbudo, pés descalços, bombachas arremangadas, trazia quatro ou cinco tarros de quarenta litros, cheios de leite que o avô guardava para entregar ao padeiro que os vinha buscar na carroça depois de ter distribuído o pão. Por prestar este serviço o avô ganhava todos os dias uma panela de leite do leiteiro e um pão do padeiro o que muito ajudava na alimentação porque o lucro do boteco era muito pouco. Muitas vezes o leiteiro trazia para o avô um saco com verduras o que era um grande presente.

Ficou contente ao ver o barco Baraúna da Mirim deslizando empurrado pelo vento. Viu a manobra para atracar. No meio do século XX o Baraúna da Mirim ainda era um barco à vela. Um mastro com uma vela triangular, capacidade para carregar cento e vinte sacos de farinha, feito de madeira e na proa a cabina: um cubículo onde mal cabia um beliche com dois leitos, o leme, um fogão a lenha de apenas uma boca, um lampião e debaixo do beliche a caixa dos mantimentos. Na cabeça povoada de sonhos e fantasias, alimentados por gibis e filmes, aquele era um barco de aventureiros. Na verdade o barco servia para viajar entre Pelotas e Jaguarão carregando contrabando: da fronteira trazia farinha e para lá levava café ou cachaça, pertencia a um português espertalhão, dono de uma padaria. Levantou e foi saudar os dois tripulantes, era amigo do comandante, um negro gordo que estava sempre rindo e que contava para ele muitas estórias do distante rio Jaguarão e da bela Lagoa Mirim. Contava as estórias das baraúnas; monstros que moravam no fundo da lagoa e metiam medo nas tripulações. Ganhou de presente do amigo comandante um pacote com um quilo de uns caramelos uruguaios muito famosos naquela época, por serem muito bons e por serem grandes e ganhou uma bonita flâmula do “Clube Harmonia de Jaguarão”.

Quando viu a flâmula o Gaguinho gostou muito e quis fazer troca. Doquinha aceitou a troca por duas. As duas citadas no capitulo VI: de um centro espírita da cidade de Três Rios no Estado do Rio e a de um rádio amador da vila Marcilio Dias em Santa Catarina. Fizeram a troca.

Fazendo pesquisas e investigações para o presente trabalho, testemunhas não oficial contaram que depois de formado o Doquinha foi trabalhar na cidade de Volta Redonda e num domingo foi, com um grupo de amigos, a cidade de Três Rios para assistir uma palestra num centro espírita, o da flâmula, conheceu uma moça com a qual namorou e casou e esta moça era de Santa Catarina, da vila Marcilio Dias no município de Canoinhas. Mas este fato não nos chamou a atenção e nem aprofundamos pesquisa sobre ele já que foge os objetivos do presente trabalho e mesmo contradiz as informações, como veremos no fim deste trabalho, sobre os mortos e feridos no terrível combate.

Mas foi no fim daquele dia em que uma brisa suave varia o sul do Brasil que a noticia se espalhou pela Várzea como um tufão violento.

Foi pela manhã, hora que os mais grandes estavam nos colégios e ginásios da cidade e os mais pequenos brincavam nos terreiros das tribos, que uma horda de bárbaros vindos de além Santa Bárbara invadiu o “Campinho da Bento Martins”.

Abrimos um parágrafo para explicar que o Campinho da Bento Martins, que na idade média chamou-se “Cacimba do Mato” era o quarteirão da cidade limitado pelas ruas: Três de Maio, Gomes Carneiro, João Pessoa e Bento Martins, que na época não tinha sido atingido pela terrível especulação imobiliária. Terreno onde se reunia numerosa tribo.

A horda selvagem atacou o campinho, um grupo de mandinhos (mandinho na linguagem varzeana eram os mais pequenos) jogava bolinha de gude, os invasores recolheram as bolinhas dizendo:

- Baba luz que não tem cruz...

Naquele tempo quando se jogava bolinha de gude tinha que fazer uma cruz ao lado da cancha senão os mais grandes faziam o baba luz. Mas no caso da citada invasão mesmo que tivesse a cruz os bárbaros de além Santa Bárbara não respeitariam. Um grupo jogava futebol com uma bola de borracha, um dos invasores pegou a bola e num gesto satânico e cruel puxou do bolso um canivete e diante do dono da bola que chorava aos prantos fez vários cortes na bola. Os mandinhos protestavam:

- Tu faz isto que tu é mais grande...Espera o meu irmão chega da aula que ele te caga a pau... Meu primo vai rebenta teus beiço...

- Cala a boca mandinho de merda!

- Cala a boca já morreu, quem manda na tua mãe sou eu.

E seguiram fazendo terror. As gurias que brincavam na calçada (o campinho era reduto só permitido aos guris, gurias brincavam na calçada) não foram poupadas. Um grupo pulava sapata (também chamada de amarelinha) eles apagaram arrastando os pés, os riscos da sapata. De um grupo que pulava corda (chicote queimado) roubaram a corda rico troféu para aquele bando. Como toda a revolta no sul tem que ter degola, foi o que aconteceu: gurias brincavam de casinha e eles pegaram duas bonecas, uma de louça e outra de pano, degolaram e levaram as cabeças.

Depois do ataque passaram na esquina da Rua Três de Maio com Álvaro Chaves e no “Bar Maryland” tomaram sorvetes. Os sorvetes deste bar eram tão bons e famosos que vinha gente dos quatro cantos da cidade ao dito bar. O sorvete tinha tanta fama que os Estados Unidos deram a um de seus estados o nome deste bar: Maryland. Continuando sua marcha de retorno os bárbaros passaram no “Bar Santa Rita” na rua Três de Maio esquina com a Barroso (reduto de estudantes do Ginásio Diocesano, que tinha um blusão cinza com a gola branca e como símbolo o Dunga: um dos sete anões, atenção: o blusão amarelo dos “ Canarinhos da dona Alice” era para dia de festa). Neste bar comeram recheadas tomaram batida, (a batida do Santa Rita além do leite e da banana levava um pedaço de goiabada) e compraram cigarro avulso. Continuando a marcha, seguiram pela Barroso, dobraram na rua Gomes Carneiro e ao passar diante do Apolo roubaram as fotos dos cartazes.

X

Erro mortal: cutucaram a onça com vara curta, acordaram o gigante adormecido. Que até os Estados Unidos precisando movimentar a sua poderosa maquina de fazer viúvas, órfãos e aleijados, imaginou inventar que a Republica Monárquica da Várzea tinha poderosas armas químicas o que justificaria uma invasão americana, recuaram da idéia ante o alerta de uma mulher, que entende de guerras, avisou ao Pentágono que declarando guerra a Várzea eles corriam o risco de serem invadidos pela torcida Xavante. Alias foi pronunciar o nome desta torcida e a grande potencia entrou no sistema de alerta ultrasupervermelho e todos os bares, todos os restaurantes, todos os postos de gasolina e cabarés localizados a beira das principais rodovias fecharam as portas e viaturas da policia rodoviária se espalharam ao longo das rodovias.

Naquela mesma tarde, os líderes do Campinho da Bento Martins se reuniram e decidiram pela guerra. Primeira iniciativa conversar com os lideres de todas as turmas da Várzea. Primeira tribo, escolhida, a da Pracinha do Porto. Enviaram os mensageiros que voltaram com a reunião agendada para o outro dia à tarde no chafariz da Pracinha.

Gaguinho e o grupo aguardavam a chegada dos líderes do Campinho da Bento Martins, sentados no chafariz, quando ele olhou para o chafariz também conhecido pelo nome de chafariz das três meninas, sendo o tal chafariz em forma de cálice e o pé do tal cálice cercado por três estatuas de ferro representando meninas. Desafiou os companheiros:

- Duvidam eu subir, ali e abraçar aquela guria !

Duvidaram e ele subiu, abraçou a estatua e estava coxeando no momento que o grupo de líderes surgiu na esquina e Lelei foi rápido e gritou:

- Paralisa aí!

Tinham o trato e ele obedeceu. Os visitantes o encontraram naquela posição comprometedora. Depois das risadas e piadas trataram do importante. A palavra de ordem foi: vingança. Combinaram entrar em contato com líderes de outras tribos e naquele momento mensageiros foram para a Vila do Sapo e Pontilhão da Tiradentes combinar uma reunião.

A vingança do Gaguinho contra o Lelei aconteceu com a ajuda dos cabungueiros.

Cabungueiros eram os homens que trabalhavam no cabungo. Naquele tempo uma boa parte da cidade ainda não tinha o encanamento de esgoto e nem fossas e então as fezes ou o coco ou a merda eram recolhidos pelos cabungueiros. Não existia o “WC” e sim a latrina. Um banco de madeira com um furo no assento e debaixo do banco um balde feito de madeira, este balde recolhia a tal merda e no outro dia este balde era colocado (fedendo) na calçada para os cabungueiros recolherem, (serviço feito em carroças ou caminhões). Alegria da gurizada era fazer continência aos cabungueiros com a mão esquerda tapava o nariz e com a direita a continência. Os cabungueiros gritavam um monte de desaforos.

De manhã iam para o colégio (diziam ginásio) com uniformes limpos, Gaguinho e Lelei, apareceu o caminhão do cabungo, Gaguinho convidou a fazerem continência. Lelei topou. O caminhão vinha perto, os dois fazendo continência, mas prontos para dispararem e ai o Gaguinho disse:

- Paralisa ai!

Gaguinho correu, Lelei ficou parado e o caminhão passou com os cabungueiros gritando e jogando merda no Lelei

XI

Acertada a reunião para à tarde do dia seguinte, no Pontilhão da Tiradentes. O Pontilhão era a tribo mais numerosa e a mais guerreira da Várzea. O Pontilhão estava para a Várzea assim como Esparta estava para a Grécia.

Na época o Pontilhão era comandado por um triunvirato: Poradinha, Porrada e Porradão, campeões no jogo de pulso, bons de capoeira , os reis da bicicleta. Pela Rua Tiradentes do Mercado ao Pontilhão; treze quarteirões, e a Tiradentes uma rua movimentada, pois era o acesso à balsa que atravessava o São Gonçalo na rodovia Pelotas Rio Grande. Eles desciam do Mercado ao Pontilhão, de bicicleta, sem segurar o guidom e não respeitando as preferenciais. No futebol os três jogavam na defesa, a bola até podia passar, mas o jogador adversário não. No futebol do Pontilhão só era pênalti se ofendesse a mãe ou batesse na cara do adversário, porque do pescoço para baixo era considerado canela e quebrar canela era permitido: futebol era jogo de macho.

O líder da Vila do Sapo compareceu de chuteiras (coisa difícil de adquirir na época) e debaixo do braço um balão. Não era exibimento, mas sim mostrando o espírito esportivo da Vila. A Vila era muito esportiva, talvez por estar entre o “Veleiros Saldanha da Gama” e o maior estádio de futebol do mundo, o não menos glorioso “Bento Freitas”. A Vila tinha bons ciclistas, que a bicicleta era o meio de transporte já que naquele tempo a Vila ainda não tinha sido invadida pelos poluentes ônibus. Também tinha bons nadadores, que além de estender seus domínios até a margem do São Gonçalo, a vila tinha açudes. Sim a Vila se dava o luxo de ainda ter campos selvagens e açudes para, podemos dizer, ciúmes das outras tribos. Até hipismo a Vila tinha porque em seus campos ainda havia cavalos e pode se dizer que seus limites iam até a “Cancha de Carreiras do Aterro”.

Na reunião todos concordaram com uma guerra para varrer do mapa os territórios além Santa Bárbara e se comprometeram a armarem suas legiões e preparar para a luta. Democraticamente o Gaguinho foi escolhido o chefe provisório de todos os exércitos e recebeu carta branca para organizar o combate.

XII

Reunidos no quarto de estudos do Gaguinho para mais uma rodada do campeonato de futebol de botão, ele subiu numa cadeira e imitou a voz do locutor da “Rádio Nacional”; Heron Domingues:

- Informa o “Repórter Esso”: o campeonato fica suspenso por causa da guerra...

Desceu da cadeira e continuou falando:

- Temos que preparar a invasão...

Saci interrompeu dizendo que o Pedras Altas Dois ainda não tinha chegado e pediu para jogar uma partida amistosa com o Lemão.

Muitos minutos depois chegou o eterno atrasado, entrou levando broncas e tapas na cabeça. A partida, amistosa, acabou e Gaguinho reiniciou a reunião:

- Temos que programar a invasão...

Lelei interrompeu:

- Tuas irmãs vão escutar atrás da porta.

- Elas não tão em casa... Lelei cala a boca.

Saci pediu a palavra e disse:

- Invadir é loucura... Brigar no chão deles, a gente leva a pior... Lá é cheio de becos... É do outro lado do Santa Bárbara, nem todas as ruas têm ponte...E ainda é passando os trilhos e muitas ruas deles desembocam nos trilhos...

Sargento Garcia com seu espírito guerreiro, interrompeu:

- Temos que lutar em campo neutro.

Ficaram em silencio e todos olhando para o Gaguinho que bateu na cabeça do Pedras Altas Dois dizendo:

- Com a palavra o nosso futuro advogado.

Pedras Altas Dois pensou e disse:

- Mandamos uma declaração de guerra... Perguntamos se eles têm a coragem de lutarem contra nós em campo neutro.

Saci disse:

- Eu não levo a declaração.

Pedras Altas Dois concordou e disse:

- Ta certo... Vamos mandar pelo Zé do Jornal, que ele é de lá e conhece os lideres.

Zé do Jornal era o entregador de jornais e era da Vila Canela, entregava jornais em toda a cidade e inclusive na Várzea. Isto é que dava certa tranqüilidade ao Saci de poder entregar doces no território inimigo. Sim: se um sofresse algum ataque o outro, com toda a certeza, seria alvo de violenta represália.

No outro dia o Pedras Altas Dois que era um grande “CDF” (segundo pesquisamos: na época estas três letras significavam que o elemento era muito estudioso, por muito que pesquisamos não descobrimos de quais palavras eram as iniciais), faltou a aula para se encontrar com o Zé do Jornal a quem pediu para levar a mensagem, a qual disse e repetiu varias vezes:

- Se eles têm a coragem de lutarem contra nós em campo neutro?

Zé do Jornal que era um elemento de imprensa disse:

- Escreve... Manda escrito.

Arrancou uma folha de caderno e escreveu.

XIII

O sabiá cantando na praça, sentado no chafariz, solitário, Sargento Garcia envolto em mil pensamentos, estava enamorado da guria mais linda do mundo, baixinha, gordinha, pernas roliças, o cabelo bem preto, olhos verdes. Que vontade de ver aqueles olhos. Droga de vida! Ela estudava na segunda série ginasial do “Colégio São José”, no outro dia ia esperar a saída do colégio e o mais importante: ia ter coragem e falar com ela. O que dizer?

Num canto da praça, Gaguinho, Pedras Altas Um, Saci e outro guri jogavam o taco. Noutra parte um grupo jogava bola de gude e outra turma brincava de arco (empurrando um arco com ajuda de uma trave feita de arame, o chamado brinquedo do arquinho).

Recostados numa arvore, Doquinha e Lemão que tinham acabado de chegar do centro da cidade onde andavam procurando emprego. Lemão sacudiu a cabeça:

- É, vou tirar um curso de datilografia... Sabendo datilografia é mais fácil de encontrar emprego...

Doquinha concordou e disse:

- Eu não tenho dinheiro pra pagar o curso... O pai do Gaguinho disse que vai falar com os amigos dele pra me conseguir um emprego... Trabalho de tarde, estudo de manhã...

O sabiá parou de cantar, assobios e apitos ecoaram pela praça alertando a aproximação de estranhos. Mais de vinte bicicletas a maioria de luxo, dignas de grandes chefes. A caravana fez uma volta na praça. Gaguinho e seu grupo pararam perto do chafariz. Dois lideres pararam as bicicletas.

Abrimos um parágrafo para dizer que naquele tempo uma bicicleta de luxo, tinha farol, gerador de corrente acionado pela roda traseira, estojo com chaves para conserto, sinaleiras, esponja no banco, buzina e costumava ser enfeitada, inclusive com flâmulas.

Dois chefes: um negro magro e alto com estilo de jogador de futebol, pendurado no cinto um chaveiro e no chaveiro um canivete, o outro um moreno forte com um boné vermelho (boné que os agentes das estações ferroviárias usavam. Aquele ele achou no lixo). O negro perguntou quem era o Gaguinho.

Gaguinho bateu no peito e olhou para os dois. Um minuto de silêncio e tensão. O do boné vermelho disse:

- A gente é da turma da vila Canela... No causo daquele bilhete...

O Negro interrompeu explicando:

- Lá na vila a gente só manda bilhete pra namorada...

Gaguinho estufou o peito e disse:

- Aqui a gente não manda bilhete, a gente conversa com ela e pega da mão.

O do boné vermelho fez um gesto e disse:

- A gente não veio aqui pra conversa fiada... A gente veio pra falar da briga...Se vocês querem briga, vai ter briga...A gente já ta esperando vocês lá na vila...

- Lá na vila de vocês a nossa turma não vai...

O negro com estilo de jogador de futebol interrompeu perguntando:

- Tão com medo?

Enquanto a conversa estava tensa o Sargento Garcia junto com o Doquinha foram organizar guardas nos quatro cantos da praça para não serem surpreendidos por uma provável força inimiga. Saci juntou um grupo de bicicleteiros e ficaram vigiando os bicicleteiros da caravana inimiga. Lemão e Pedras Altas Um estavam ao lado do Gaguinho. O do boné vermelho insistia que a luta fosse no território deles. Durou mais de meia hora a tensa conversa até que o Gaguinho decidiu:

- Não vai ter mais guerra... Vocês só são homens lá no chiqueiro de vocês.

O negro com estilo de jogador de futebol ficou brabo:

- Chiqueiro não! Respeito é bom e eu gosto.

Gaguinho não ligou para a provocação e ficou calado. O do boné vermelho pensou e disse:

- A gente é macho em qualquer lugar... Onde vocês querem a briga?

Gaguinho sorriu triunfante e respondeu:

- Vamos escolher: pode ser na Praça Pedro Osório, na Pracinha do Direito...

O negro com estilo de jogador de futebol interrompeu:

- No largo da Estação, na Praça da Santa Casa... Do lado de cá da Rua XV a gente não briga.

Por sorte chegou o Pedras Altas Dois, atrasado, mas chegou. O negro com estilo de jogador de futebol era colega de aula dele e também queria ser advogado. Os dois conversaram bastante e depois de consultarem os chefes acertaram local e data.

O local: ao lado da usina, no fim da Rua Saldanha Marinho. Naquele tempo a usina elétrica era movida por grandes motores a óleo que faziam um grande barulho então se os dois exércitos lutassem ali, o barulho do combate seria abafado pelo barulho dos motores e assim a guerra não incomodaria ninguém que pudesse chamar a policia.

O dia: escolheram um sábado ao anoitecer. Como estavam numa quarta-feira, escolheram o sábado da próxima semana: ou seja; teriam dez dias para organizarem as legiões.

Logo que a caravana, inimiga, se retirou Gaguinho enviou mensageiros para avisarem aos comandantes aliados que local e data da grande luta já estavam definidos.

XIV

Local e data definidos, marcaram reunião para escolherem o chefe das tropas. Reuniram-se na Pracinha do Direito, primeiro viram a saída do Colégio São José para alegrar os olhos mirando as gurias mais bonitas da cidade. Depois que viram a saída, se amontoaram para ver um livrinho de sacanagem que o líder da Vila do Sapo tinha conseguido.

Novo parágrafo para dizer que os tais livrinhos de sacanagem eram publicações artesanais, desenhados, com uma estória simples que acabava com um casal praticando o ato sexual.

Ai quando estavam discutindo a quem escolheriam para ser o chefe o Saci chegou com a noticia: a Vila Castilhos ia lutar ao lado dos inimigos. A Castilhos! Foi a exclamação geral. Todos se olharam e ficaram mudos. Havia uma solução, mas nenhum dos líderes quis ser o primeiro a opinar. Para diminuir a tensão um da turma do Pontilhão da Tiradentes disse:

- Eu tenho uma namorada na Castilhos...

- Isto é importante...

- Cala a boca Lelei.

O namorado da namorada na Castilhos continuou:

- Amanhã eu vou lá na Castilhos e vou descobrir o que eles tão preparando...Amanha a gente se reúne no Campinho da Bento Martins e eu conto tudo que eu descobrir...Certo ?

XV

Passaram a tarde no Campinho da Bento Martins jogando bola e aguardando o namorado da namorada na Castilhos. Este chegou e logo deu a noticia que ninguém queria fosse confirmada. Sim; a Castilhos estava se preparando para a guerra, já tinham organizado um esquadrão de caniveteiros: o canivete do chefe era canivete de cinema, aqueles de mola; apertava um botão e a lamina saltava. E tinha mais: andavam lá no “forno do lixo” (a Castilhos fazia fronteira com o lixão) juntando arcos de barril e de barricas (recipientes que na época eram muito usados, eram feitos de madeira afixada através de arcos de metal) para fabricarem adagas. Exatamente: um esquadrão de adagoneiros. Muitos até já andavam pintados para a guerra.

Tensão, nervosismo, os líderes ficaram tensos e em completo silencio. Tinha a solução, mas nenhum deles queria ser o primeiro a falar para que no futuro a história o condenasse por ter tido a idéia que transformaria a batalha numa catástrofe incontrolável. Ninguém falava, todos olharam para o Lelei. Se o Lelei falasse o que eles queriam ouvir, ninguém ia dizer: cala a boca Lelei. Mais uns minutos e o Lelei disse:

- Vamos pedir ajuda a turma do “Gasômetro”.

Lentamente os líderes foram se descontraindo e ficando aparentemente mais calmos. Gaguinho disse:

- Bem... Gasômetro também é Várzea.

Concordaram e mensageiros foram enviados. Naquela mesma tarde aconteceu à reunião.

O Gasômetro ficava entre o ramal ferroviário do frigorífico e o São Gonçalo, lugar de homem valente, terra de guria bonita.

A comissão de líderes esperou nos trilhos, que ninguém ia entrar no Gasômetro, estranho ficava na fronteira. Um dos líderes de turma veio conversar. Ruivo, cabelo comprido, fiapos de barba, olhos azuis, na testa a cicatriz de um talho.

Abrimos um parágrafo para contar que a turma deste líder ostentava os títulos de turma da pesada, turma boca braba e os medonhos. Elemento para entrar para a tal turma tinha que fazer vários testes. O teste do paladar; tinha que comer uma minhoca e tomar um cálice de molho de pimenta. Tinha que atravessar o São Gonçalo a nado. Tinha que saber remar. Tinha que tomar um banho no chafariz da Praça Pedro Osório e fazer a volta no mercado correndo nu. Tinha que saber andar de bicicleta sem segurar o guidom. Tinha que saber roubar galinha.

Reunião rápida, ali não era lugar de reunião, pois se a policia visse levava todos para darem explicação na delegacia. O líder de turma no Gasômetro concordou em ajudar na guerra e disse:

- Vamos levar nossos trabucos.

Trabuco, arma violenta e perigosa. Arma de fogo, feita com um pedaço de cano que se amassava uma das pontas e ali fazia um pequeno furo onde botava uma cabeça de fósforo para servir de espoleta. Carregava botando pólvora, bucha de papel, pedaços de ferro e outra bucha de papel. Era só riscar a cabeça de fósforo e a pólvora explodia.

XVI

A próxima etapa foi à escolha do comandante geral do grande exército da República Monárquica da Várzea: foi escolhido um elemento da tribo do Campinho da Bento Martins. Elemento que no currículo e no corpo trazia marcas de muitas batalhas. Nasceu e se criou na região mais deflagrada do mundo: o médio rio Piratini, onde ficam Cerrito e o Outro Lado. Sendo cerritense participou de muitas guerras contra os chamados perus do outro lado. Vindo estudar em Pelotas entrou para o “Ginásio Pelotense”, ou seja, entrou para a legião Gato Pelado e participou de muitas lutas contra os Galinhas Gordas (Ginásio Gonzaga) .

Como era o tempo do eu quero ser o comandante escolhido tinha a vocação de ser militar. A única flâmula que tinha no quarto e que pendurou na cabeceira era a flâmula da “Academia Militar das Agulhas Negras”. Ele e Sargento Garcia logo ficaram amigos e imaginaram muitos encontros nos quartéis da vida.

Pesquisando conseguimos descobrir que a vila, que Deus separou de Cerrito usando o rio Piratini, naquela época tinha deixado de ter o nome de Engenheiro Ivo Ribeiro e passou a chamar-se Vila Olimpo.

Analisando documentos da tropa inimiga descobrimos que seu comandante geral era o do boné vermelho, que era nascido e criado na Vila Olimpo e estava em Pelotas estudando no “Ginásio Gonzaga”. Os comandantes já se conheciam de outros combates.

XVII

Intensificou-se o chamado esforço de guerra, reservistas foram convocados, armas e munições começaram a ser preparada.

A avó do Lemão morava num chalé, velho, que tinha um pátio grande, onde tinha o canteiro de repolhos para o “chucrute”, comida preferida do Gaguinho. No fundo do pátio tinha um galpão onde ficava o cavalo e a carroça da padaria. Atrás deste galpão é que a turma da Pracinha do Porto montou o seu arsenal.

Lemão organizou uma equipe para fabricar bodoques. Uns procuravam nos lixos, sapatos velhos, chinelos, bolsas para tirarem o couro que serviria para a solinha do bodoque, outros andavam a cata de borrachas, Saci reuniu um grupo de bicicleteiros e foi para a estrada do Laranjal procurar árvores a fim de cortar forquilhas.

Lelei e um primo do Lemão foram cortar forquilhas na “Praça da Santa Casa” quase foram presos.

Pedaços de madeira, cordão, até panelas velhas para servir de capacete, caixas de papelão para fazer escudos, cabos de vassouras eram valiosos. As equipes se multiplicavam revirando os fundos de pátios e montes de lixo. Pedras para os bodoques, até carrapichos, bolinhas de gude que estivessem lascadas também serviam.

Dos esconderijos secretos retiraram as mais diversas armas. Quem apresentou a que mais chamou a atenção foi o Doquinha: com noventa centímetros de comprimento e três de diâmetro um nervo, rijo, mas flexível, de pênis de touro. Presente que ganhou durante as férias da vida dele.

Na turma do Gaguinho, todos passavam as férias fora de Pelotas. Gaguinho ia para o Laranjal onde o pai tinha casa de veraneio. Sargento Garcia ia a Bagé para a casa do avô, viagem longa e emocionante: o trem saia de Pelotas às nove horas e dois minutos chegava a Bagé às dezessete horas e cinco minutos. Voltava cheio de flâmulas: do Grêmio Bagé, do Guarani, Clube Comercial, Associação Rural, dos quartéis. Os irmãos Pedras Altas passavam as férias na fazenda do pai. Lelei ia para a casa das tias em São Lourenço do Sul. Lemão ia para a casa dos pais no interior do município. Saci ia para a casa da avó em Rio Grande de onde voltava cheio de bichos de pé e estórias de brincadeiras em dunas de areia fina e banhos em mar salgado. O único que ficava em Pelotas era o Doquinha.

Inicio de Dezembro, tarde muito quente, as férias tinham começado a turma já tinha debandado, ele estava sentado na pedra do cais, triste, olhando a água quando chegou seu João Remangado. Era um homem alto que às vezes atravessava o rio numa canoa pequena, deixava a canoa ali perto do boteco do avô e com um saco cheio de queijos nas costas ia entregar queijos no Mercado “afamado e apreciado o queijo do outro lado”, geralmente quando voltava parava no boteco para tomar um trago de cachaça e até tentar a sorte no jogo do osso, se tivesse adversário na cancha. Naquele dia seu João já estava voltando, ia desamarrar a canoa olhou para ele, perguntou por que estava triste e nem esperou a resposta convidando:

- Vamos passar uns dias lá em casa... Lá tem bastante guri pra tu ajudar a trabalhar e pra brincar... Vou pedir pro teu avô.

O avô concordou, fez uma trouxa com as poucas roupas que tinha. Atravessaram o “rio” de canoa até a ponte do trem. Da ponte seguiram por cima dos trilhos a pé. Nove quilômetros uma reta plana cortando um banhadal. Lá muito longe os vultos de algumas casas do povoado do Capão Seco. Seu João, bombacha suja, botas rasgadas, caminhando ligeiro, ele se esforçando para acompanhar... Depois de uma hora de caminhada chegaram. Cansado e tímido. Seu João era encarregado de uma grande leitaria e morava numa casa velha que ficava entre o galpão e uma horta. Naquela casa moravam seu João a mulher dele, a mãe dele, uma irmã da mulher dele, a mãe da mulher dele e os nove filhos de seu João: cinco guris e quatro gurias. Aquele mundo de gente deu as boas vindas ao Doquinha que ali recebeu o apelido de Gurizão.

Compromissos de tirar água da cacimba, cortar lenha, tocar as vacas, limpar o galpão e muita correria e bastante brincadeira. Brincar de Tarzan numa autentica selva com arvores grandes, ferozes lagartos, sorros, preás, perigosas serpentes, alimentando-se da pesca (lambaris na sanga), da caça (preás caçadas a bodoque ou pombas na arapuca), frutas selvagens (figuinho das grandes figueiras, figo de tuna, coquinhos da palmeira jerivá, juá). Brincar de mocinho (cambói aí!) num autentico faroeste, com campo, cavalos e gado. Boleadeiras feitas com tiras de pano e sabugo de milho para derrubar os búfalos das grandes manadas (bando de galinhas). Banhos no açude, a mais melhor das melancias: a roubada e o susto que virou assunto para o resto da vida; um velho brabo gritando e dando tiros de sal. Corridas de petiço. Juntar osso nas carniças no campo para vender pro homem da carroça velha com um cavalo magro e uma balança que roubava no peso: dinheiro pra tomar refresco de “grosel” na venda, gelado (o gelo vinha de trem), ou pra comprar gibis do “revisteiro” do trem. De noite na grande mesa da cozinha: numa ponta os mais grandes tomavam mate amargo e jogavam baralho (escova), na outra ponta os mais pequenos tomavam mate doce e jogavam, com um baralho muito velho, o burro tisnado. Leite de apojo com canela, café com leite espumante, bolo de coalhada, doce de leite, o prato que gostou para o resto da vida: feijão de remangado; feijão cozinhado com milho verde e guisado. Na hora da sesta dos mais grandes as gineteadas nos terneiros (montavam se segurando na cola) ou as touradas de vacas que tinham cria nova.Roubar milho verde pra comer assado na brasa . A tarde tomar banho e se arrumar para ir a estação ver o “trem das cinco”. Não podia mandar paralisa em cima dos trilhos. Espinho em baixo do pé, dedão esfolado curativo imundo. Sobrava energia e faltava tempo.

XVIII

E chegou o “dia DD” o mais grande dos dias grandes. Tensão e nervosismo, alegria e algazarra. É grande a felicidade do homem quando vai destruir seu semelhante e depois é muito maior a infelicidade. Reuniu-se o grande exercito na Rua Gomes Carneiro entre a “Igreja do Porto” e o “Colégio Santa Philomena”. Na legião do Pontilhão um esquadrão, lá da Balsa, com boleadeiras. Na legião da Vila do Sapo um esquadrão com armas medievais, copiadas dos gibis de “Robin Hood”: as bestas (arco na horizontal, apoiado numa coronha e acionado por gatilho), armas bem feitas por dois irmãos que eram muito jeitosos, que chamaram a atenção de todos os guerreiros. Da Pracinha do Porto o Lemão comandando o esquadrão de bodoqueiros. A grande maioria da tropa se constituía de infantes caceteiros, armados de cacetes.

Saci, o almirante Tamandaré, na bicicleta, aliás, o “Contratorpedeiro Baependi”. Fez de papelão uma flâmula que pendurou no guidom. Tinha a flâmula do Baependi em casa. Na última semana da pátria quando os navios de guerra estiveram em Pelotas, ele passou cinco dias no cais do porto lutando para conseguir aquela flâmula e não ia arriscar a perder a original o que o motivou a fazer uma cópia. Saci comandava uma esquadra de bicicleteiros que iam espiar os movimentos do grande e violento exército inimigo.

Lelei com uma caçarola, furada, na cabeça, Pedras Altas Um de botas e bombachas com chapéu de abas largas. Tinha um fantasiado de cow boy: chapéu de Tom Mix e dois revolveres de espoleta na cintura. Um magro alto, com uma armadura feita de papelão se intitulava o “Don Quixote” qualquer semelhança nem era mera coincidência. Na legião da Vila do Sapo um chamava a atenção: botas brancas muito maiores que os pés dele (do pai trabalhar no frigorífico), um saiote feito de saco de estopa, escudo feito de papelão onde pintou um sapo com tinta verde, na cabeça um capacete feito de uma panela velha com duas grandes guampas que conseguiu lá no frigorífico, na cintura uma espada de madeira e empunhando um cabo de vassoura com uma bandeira branca (foi um saco de farinha) tendo desenhado no centro uma mão fazendo com o anelar e o indicador o “V” de Várzea, se intitulava: Hagar o Terrível.

Aníbal, Bento Gonçalves, Souza Netto, Búfalo Bill, Tarzan, Atila o Rei dos Unos, Popeye, Lampião, Honório Lemes (se a bala vem por cima se abachemo, se a bala vem por baixo se levantemo, se a bala vem pelo meio se fu...), o Último dos Moicanos e eram muitos os nomes de guerra.

A grande banda: um tambor que o cara roubou no centro de umbanda da tia, uma cuíca da Teles e uma corneta, fanhosa, do bloco da Bruxa.

Toda a guerra tem mulheres. Duas moças do “Beco da Barroso” importante instituição da Várzea naquela época onde muitos respeitáveis vovôs de hoje (2005) iniciaram a praticar para cumprirem com a determinação: “crescei e multiplicai-vos”. As duas se misturam à tropa e logo Gaguinho as apelidou: Anita a Garibaldi e Ana a Néri. Logo o Lelei andava se engraçando com uma delas, mas o Gaguinho avisou:

- Tu perdes a virgindade num dia e no outro cai a piroca: podre de gonorréia...

Todo exército tem estrangeiro. Na turma da Pracinha do Porto tinha dois primos que eram do longínquo e distante município de Santa Vitória do Palmar, cujos habitantes eram chamados de “mergulhão”. Um era do distrito do Curral Alto: Mergulhão do Curral Alto, o outro era do distrito do Arroíto: Mergulhão do Arroíto. Como todo o apelido deve ser curto e não comprido, foram resumidos para Mergulhito e Mergulhauto. Mergulhito e Mergulhauto cada um com um penico na cabeça e Gaguinho determinou:

- Vocês são os estrangeiros.

Mergulhauto, alto magro, falava gritando, protestou:

- Çanta Viiitóóóriiia hé Bracíííííl.

Gaguinho sacudiu o braço:

- Fica mais pra lá do que pra cá!

Mergulhauto insistiu, mas o Mergulhito o acalmou:

- Deixa... Daqui a pouco ele nos ofende dizendo que somos argentinos.

No alto da torre da igreja, Jesus com os braços estendidos. No céu estendidos os braços do Cruzeiro do Sul. Anoiteceu: hora de seguir em marcha. Chegou o grande momento. Gaguinho subiu no muro do colégio, soprou um apito com força. Todo o grande exército voltou-se para ele que bradou:

- É hora! Eu Napoleão o mais pequeno dos mais grandes passo o comando a Alexandre o mais grande.

Apontou para a escada lateral da igreja onde estava o comandante. Calçando coturnos muito velhos e rasgados (achou no lixo do quartel), vestindo uma grande túnica que tinha sido de um sargento da Brigada Militar e chapéu de cangaceiro: Alexandre o mais grande levantou o braço e baixou com energia gritando:

- Vamos Várzea, a vitória!

Rufou o tambor do centro de umbanda, chorou a cuíca da Teles e soou a corneta fanhosa da Bruxa. Tremeu o planeta, as legiões da Várzea seguiram pela rua Gomes Carneiro. Alegria ao passar diante do Apolo. Na esquina com a Rua XV, Gaguinho ficou no centro da rua olhou, lá em baixo, a quieta misteriosa e sensual Várzea. Girou noventa graus e pela Rua XV olhou o coração da organizada, invejada e sempre doce Pelotas, gritou:

- AQUI VEM A VÁRZEA!!!

Seguiram pela Rua XV, silencio respeitoso diante da “Igreja Cabeluda”, aplaudidos e incentivados pelas chinas da volta do “Mercado”. Pararam na frente da “Prefeitura Municipal”, Gaguinho subiu ao peristilo onde disse a letra do hino do expedicionário varzeano:

- A Várzea tem cinamomos onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra

Não permita Deus que eu morra,

Sem que volte para lá

Pra escrever com o V de Várzea

a vitória que virá.

Saci veio ao encontro do comandante e fez um relato da movimentação das tropas inimigas.

Continuaram ao chegar à esquina da Rua Marechal Floriano, onde estavam alguns espiões inimigos montados em bicicletas, não dobraram, continuaram pela Rua XV. Manobra para confundir o inimigo. Pararam diante do “Café Aquário” onde só o comandante entrou. Comprou um charuto, tomou um cafezinho e ao sair, parou na porta enquanto seus comandados gritavam: aqui vem a Várzea. Reuniu o alto comando, passou as últimas ordens, mandou os vanguardeiros ir na frente para evitar qualquer tocaia. Voltaram um quarteirão e na Rua XV esquina com a Marechal Floriano Peixoto dobraram a direita. Alexandre o mais grande apontou ao longo da Floriano e disse:

- No fim desta rua esta o Santa Bárbara e depois dele um grande inimigo nos espera... Hoje será o mais grande dos mais longos dos dias.

Da esquina da Rua XV até a ponte do Santa Bárbara, cinco quarteirões, sendo o último, antes do arroio, a “Praça dos Enforcados”, depois a ponte logo em seguida a esquerda o conjunto de resfriamento da usina (hoje- 2005- neste local existe um centro comercial chamado “Camelódromo”), o fim da Avenida Saldanha Marinho e a barulhenta usina. O fim da Saldanha Marinho era o ponto de encontro conforme o combinado.

Passaram na esquina da Rua Andrade Neves, atenção e adrenalina, passaram a esquina da General Osório, mais atenção e mais adrenalina, na esquina da Marechal Deodoro da Fonseca o comandante Alexandre o mais grande reuniu o alto comando e dividiu a tropa em duas. Uma parte seguiu pela Rua Deodoro, um quarteirão e dobrou na Rua Urbano Garcia (hoje-2005- chama-se Lobo da Costa) e esperou no canto da praça. A idéia de Alexandre era atrair o inimigo para a praça. Marchou com a metade da tropa que continuou pela Floriano até o canto da praça. Duas tropas, uma na Floriano com a praça e outra na Urbano Garcia com a praça aguardando ordens superiores.

Devido à ponte a Rua Marechal Floriano é aterrada ao lado da praça ficando cerca de dois metros acima do nível da praça, então ao longo da praça a Floriano tem uma amurada, esta amurada na metade de seu comprimento tem uma entrada para a praça. Para da Floriano se entrar na praça dois acessos; um no meio da amurada e outro no canto inicial.

Na esquina da Floriano o comandante iniciou a pôr em prática o seu plano. Iam atrair o inimigo para a praça. O esquadrão de boleadores avançava até passar a ponte, provocava o inimigo e retrocedia até entrar para a praça, na dita entrada do meio da amurada. O inimigo viria perseguindo os boleadores e entraria na praça, neste momento Alexandre e a tropa da esquina da Floriano entrariam atrás do inimigo e a tropa do outro canto (Urbano Garcia) viria ao encontro do inimigo que ficaria entre dois fogos.

Avançaram o boleadores e na ponte rebolaram boleadeiras, não atiraram para não ficar sem armas, assobiaram, gritaram ofenderam mães e voltaram correndo. Surpresa: o inimigo tinha um esquadrão de arqueiros, entrincheirados ao longo da amurada que receberam com uma chuva de flechas o recuo dos boleadores. A tropa inimiga avançou até a ponte e parou. Atarantados e nervosos debaixo de uma avalanche de flechas os boleadores não entraram na praça e voltaram ao encontro da tropa.

Falhou o plano e veio a noticia que o comando inimigo, já, ocupava o chafariz no centro da praça, que as alamedas que ligam o chafariz às entradas da Floriano estavam ocupadas pelo inimigo. A tropa inimiga que permanecia na ponte era apenas uma legião de reforço do inimigo. Um comandante é um comandante. Com energia Alexandre o mais grande deu ordem para a tropa voltar a se reunir. Reuniram-se no canto da Urbano Garcia, onde já estava a outra metade.

Não havendo mais motivos para surpresas só restava avançar ao centro da praça para o confronto cara a cara, peito a peito, homem a homem. O batalhão de besteiros avançou com cuidado para abrir passagem na alameda que liga o canto da Urbano com o chafariz, logo atrás a tropa.

O inimigo, ocupando o chafariz, formado em linha: na linha de frente os bodoqueiros, na segunda linha os caceteiros e na terceira linha os arqueiros e pioleiros.

Abrimos um parágrafo para dizer que naquela época chamava-se piola uma pedra ou pedaço de ferro, ou pedaço de madeira etc. amarrado num pedaço de cordão. Rebolava o cordão e jogava. Também chamavam de funda.

O exercito da Várzea se posicionou, também em linha, pronto para o ataque: na frente os bodoqueiros, na segunda linha os caceteiros e na terceira os besteiros e boleadores.

Boné vermelho e capa preta o comandante inimigo sabia que a melhor defesa é o ataque e parado diante de seu exército, peito para frente, barriga para dentro, mãos as costas gritou:

- Canivetes e adagas.

Tremeu a tropa da Várzea no momento que os caniveteiros e adagoneiros assumiram com garbo e decisão à frente da tropa inimiga. A ordem de preparar e o brilho das brilhantes mortais mortíferas laminas.

Sem vacilar, Alexandre o mais grande ordenou imediatamente:

- Preparar trabucos.

A palavra trabuco, lembrando pólvora e mortíferos cacos de ferro, ecoou por entre os inimigos que tremeram e suaram frios.

O primeiro trabuco em posição de tiro e o inimigo se amontoaram atrás do chafariz protegido com escudos. O trabuqueiro riscou a espoleta, a pólvora chiou e como as buchas estavam muito apertadas o cano rebentou no instante do disparo. Para alegria dos inimigos a pólvora chamuscou o braço do trabuqueiro.

O segundo trabuco foi um disparo rápido, o estouro, um grito de dor e uma voz apavorada dizendo:

- Morreu!

A mãe do Lelei suspirou, estava nervosa que o dia tinha sido péssimo: deixou cair uma bacia cheia de ovos quebrou cinco dúzias. Queimou uma fornada de queques e uma boa encomenda de doces foi cancelada. Fechou a porta da fabrica, tornou a suspirar e preocupada pensou no filho. Já era hora do Lelei ta em casa. Mais nervosa e preocupada ficou ao pensar que alguma coisa pudesse acontecer com aquele filho que era tudo que ela tinha.

O pai do Sargento Garcia estava fechando o bar e deu falta de uma pequena barra de ferro que usava para calçar a porta. Com certeza o filho tinha pegado. Logo atinou coisa de brigas. Brigas de turmas. Ficou tonto só de pensar que o filho andava se arriscando em arruaças. Imaginou alguém entregando o corpo do filho.

Família reunida na sala escutando o potente rádio de válvulas a mãe do Gaguinho sentiu a dor no peito, levantou foi à cozinha tomar um pouco de água. Aquela dor poderia ser um mau pressentimento. Passou a mão na testa, olhou as horas. Gaguinho ainda não tinha chegado. Ficou tonta tendo certeza que alguma coisa tinha acontecido ao filho.

O avô do Doquinha sentou na beira da cama, estava cansado e com a eterna dor no peito, queria espichar aquele corpo velho e sofrido pela vida dura nos banhados das margens do São Gonçalo. Queria dormir mas tinha que esperar o guri que tinha um recado: no outro dia era para o Doquinha ir bem cedo num posto de gasolina que o dono do posto tinha um emprego. Serviço só de tarde e de manhã podia estudar. Aquele guri que era tudo o que ele tinha na vida ia conseguir o primeiro emprego. Um pensamento ruim: Doquinha estava demorando a voltar pra casa, só faltava alguma coisa ter acontecido.

Debruçado na velha mesa o pai do Saci botou as mãos na cabeça soltou um longo e triste soluço, as lagrimas brotaram. Perder o filho e amigo. Sozinho, naquela cidade, sem uma razão para viver. Chorando aos prantos, o mundo andando na volta. Aquela triste certeza que nunca mais ia ver o filho. Ali chorando sem ninguém para consolá-lo. Ficou viúvo o Saci era bem pequeno, criou com muito sacrifício. Perder o filho e amigo. Depois de muito chorar, suspirou e disse:

- Se é pro bem dele... Que Deus o guie.

Naquele inicio de noite um primo do Saci, (marinheiro da marinha mercante e cujo navio tinha atracado no porto de Pelotas que naquele tempo funcionava), bateu ali na casa dele e avisou para que o Saci, logo na segunda-feira, providenciasse documentos e papéis de transferência do colégio que ele, o primo, ia levá-lo para o Rio de Janeiro onde o Saci ia morar com uma tia e lá estaria mais perto da escola de oficiais da Marinha.

Na “Praça dos Enforcados” o guri que deu o grito mortal, não tinha morrido, apenas um pedaço de ferro o atingiu no braço. O sangue fez baixar a moral da tropa inimiga.

O terceiro trabuco, o do líder, arma poderosa: três canos de duas polegadas. Decidido riscou as três espoletas, chiou a pólvora e alguém avisou que ia dar chabu. Imediatamente jogou o trabuco, com toda força, para o alto: Deu chabu, falhou a engenhoca, rebentaram os canos, o clarão e o forte estouro abalaram a moral dos dois exércitos. Seguiram se os restantes, cinco, trabucos de fino calibre e que nada fizeram a não ser dar chochos estouros.

Gaguinho, sorriu nervoso, coçou a cabeça e disse:

- Igual ao canhão do Juarez Távora.

Sargento Garcia comentou em tom de consolo:

- As “V2” também falharam.

Pedras Altas Um, rio nervoso dizendo:

- Vou pedir exílio no Uruguai.

E Gaguinho comentou:

- Vamos pro “Castelo de Pedras Altas” assinar a paz.

O comandante do boné vermelho agiu rápido ordenando a sua tropa e voltar para a posição de combate. Canivetes e adagas não esgotam a munição e nem dão chabu. Os comandantes dos esquadrões dando ordens. O inimigo redobrou a moral. O comandante disse:

- Avançam, lado a lado, bodoques, canivetes e adagas. Arqueiros lançam flechas por cima. Vamos brigar a sombra de nossas flechas.

Um comandante é grande na vitória e tem que ser grande na derrota. Alexandre o mais grande, ficou na frente de seus soldados, tirou o charuto do bolso, acendeu, tirou uma baforada.

Diante deste ato o inimigo numa fração de segundos, vacilou, afrouxou a guarda e alguém comentou:

- O charuto da paz.

O negro com estilo de jogador de futebol e que queria ser advogado chegou perto do comandante de boné vermelho e disse:

- Só fumaremos o charuto da paz depois que eles botarem as armas perto de nossos pés... Humilhados...

Alexandre o mais grande num gesto rápido, firme e decidido tirou do bolso da túnica uma garrafa, de litro, feita de vidro grosso, cheia de gasolina com um pavio no gargalo, acendeu o pavio na brasa do charuto e diante da surpresa do inimigo jogou contra eles. Apavorados, numa fração de segundo, abandonaram a formação de ataque. No mesmo instante Lemão ordenou os bodoqueiros atirarem e Sargento Garcia avançou comandando os caceteiros. Os gritos e trilar de apitos ecoaram na praça enquanto o inimigo abandonava o chafariz e se espalhava pelo meio das arvores da praça. A tropa da Várzea assumiu o chafariz, a banda tocou em ritmo de samba. Hagar o terrível da Vila do Sapo subiu no chafariz e botou a bandeira , com o “V” de Várzea no alto.

Desesperados alguns bodoqueiros inimigos estavam de franco atirador. Uma pedra bateu na caçarola que Lelei usava como capacete, Gaguinho o puxou para perto de uma arvore dizendo:

- Vamos esperar a cruz vermelha.

Recostado na arvore Lelei começou a contar:

- Um... Dois... Mais dois... Três... Uns quantos... Mais...

Gaguinho perguntou o que ele estava contando. Ele apontou a policia que cercava a praça. Gaguinho ficou brabo:

- Lelei tu não falou!

A noticia se espalhou: a praça estava cercada pela policia. Uma única saída estava livre; o canto da Floriano, para lá correram desunidos e coesos os dois exércitos. Ali, estrategicamente colocados, dois caminhões dos bombeiros os esperavam e de suas mangueiras jorraram os jatos de água fria que esfriou os ânimos e apagou a chama guerreira.

Pedras Altas Dois chegou atrasado para o combate, mas chegou a tempo de poder sentar na calçada e dando risada, ver a turma tomar o banho.

FIM (capão seco 2005)