domingo, 20 de setembro de 2009

Blogdoze

Rincão Bravo.

Mil novecentos e quinze. A barranca, de onde se avista a grande várzea da foz do São Gonçalo com a Lagoa dos Patos. É primavera tempo de vento nordeste mas o dia esta de calmaria. Um grande bando de maçaricos, o grito de um tarã. A cobra parelheira se arrasta a beira da grande casa. A casa que esta ficando em ruínas. Quantas peças ? Muitas já estão há anos abandonadas. A grande despensa que em outros tempos guardou farturas de grãos, carnes, vinho, jurupinga, agua-pé, é um compartimento escuro cheirando a mofo, num canto um grande formigueiro. Tem janela que faz quarenta anos que ninguém abre. Desbotada, o reboco caindo, um canto rachado. Telhado com muitas goteiras. O patio que já foi jardim de encher os olhos com rosas, jasmins, madre-selvas, um grande caramanchão e a parreira de uvas; acabou a erva braba bate nas paredes. Só usam duas peças, um quarto e a cozinha. A cozinha ainda é da parte antiga, paredes feitas de torrões. A cozinha é grande, tem uma mesa enorme. Quem mandou fazer foi o “Tropeiro da Laguna”, isto entre mil setecentos e vinte a vinte e cinco. Sim tem quase duzentos anos. Nos campos do Rincão Bravo as tropas de mulas que vinham da Colônia do Sacramento e seguiam para a Província de São Paulo, as tropas pastavam e descansavam ates de atravessar a Lagoa dos Patos para o Estreito. Foi ponto de reunião de tropeiros. Ali estiveram Cristóvão Pereira, Silva Paes. Então tem história? Sim, muita: na invasão espanhola foi acampamento, tinha um mastro, tremulou a bandeira de Espanha, ali o Capitão Molina se reuniu com seus comandados. Expulsos os espanhóis e vieram os portugueses e o novo dono Capitão do Regimento de Infantaria de Santos. Casou com uma riconeira, descendente de açorianos. Ocupou cargos importante; foi Capitão de Distrito, ajudou o Comandante Boeme a organizar a divisão das terras.

O Rincão Bravo era ponto estratégico, ponto de descida para a grande várzea do São Gonçalo. A casa viu tempos dentro dos tempos, batizados, aniversários, noites de tormenta e medo, churrascos, fogueiras de São João, cantarias de ternos de santinhos, velório, jogo de cartas, reuniões politicas, casamentos. Não, casamento nenhum. Iam ser dois, a maldita guerra não deixou.

A casa é quase tapera, moram as duas, netas do Capitão de Infantaria do Regimento de Santos. Fedem principalmente a mijo, vestem trapos encardidos, são magras, uma é a Nair, a outra é A Outra. Nair tem cem anos A Outra é mais velha mas não diz a idade, aliás A Outra pouco fala. Não passam fome, não. O Mendes cria gado no campo delas, diz que paga arrendamento, não paga mas todo o mês trás mercadorias da venda . Muito? Pouco, mas é muito; Nair come pouquíssimo e A Outra come menos. Tem a chácara que é grande e produz muito, quem toma conta é o Negro, diz que paga arrendamento, não paga mas manda frutas e verduras para elas. O Negro planta muita cebola o distrito produz muita cebola.

A Outra estava de casamento marcado, o noivo era tenente e estava no Quartel da Torutama a comando do Coronel Isaías Calderon. Tombou, morto, nas vésperas do casamento durante o Combate do Passo dos Negros. Tristeza, desespero, ódio, A Outra passou mal, levaram para Pelotas. No Rincão Bravo andou um diz que diz que nada diz. Quatro anos depois; mil oitocentos e quarenta numa noite fria o noivo da Nair também morreu, defendendo São José do Norte do ataque dos bandidos.

É mil novecentos e quinze é uma tarde de setembro, a várzea rebrota, la no fim da várzea os telhados de Pelotas e mais ao fundo a Serra dos Tapes. Num ponto da várzea a fumaça; o “vapor de terra” das cinco horas. O caminho de ferro é um risco reto no meio do verde, lá a sete ou oito quilômetros o trem parece um brinquedinho. É; os da beira dos trilhos chamam o vapor de terra de trem, a mulher do Mendes diz train. O tempo passa faz quarenta anos que tem o “ Trem das Cinco” e ainda ira rodar por muitos anos . Já se pode ir até São Paulo de trem. O Mendes foi vender cebola. A venda vai se mudar para a beira dos trilhos, tudo vai lá para a beira dos trilhos, os trilhos ficam a seis quilômetros do Rincão Bravo. O Rincão vai ficar despovoado a casa vai cair.

Nair olha o trem A Outra caminha de um lado para outro. A fumaça do trem, um bando de maçaricos. Amanhã é vinte de setembro, Nair fará cem anos, não terá festa, há muitos anos não tem. Vinte de setembro é uma data triste foi neste dia que a anarquia começou.

A Outra caminha e resmunga, tem ódio, tem revolta, tem arrependimento, tem remorso. Fez o aborto . Não deixou o pai matar os dois. Foi nos primeiros dias da anarquia, o pai delas fez a emboscada para matar os dois e ela não deixou. O pessoal do Rincão tinha o sotaque carregado, herança açoriana. Resmungou em voz alta:

- Bandidos... O bandido do Antônio... O bandido do Bento.

  • FIM (Pelotas 20 de setembro de 2009)

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